Excelências da Língua Portuguesa

Celso de Almeida Cini

Celso de Almeida Cini

Com justa e inaudita alegria, recebemos a notícia da reabertura do Museu da Língua Portuguesa, renascido das cinzas do incêndio que o destruiu, em 21 de dezembro de 2015, com parte da vetusta edificação que o abriga, a histórica Estação da Luz. Felizmente, o prédio principal do terminal ferroviário paulistano resiste à passagem dos anos sem cheirar a escombros de mera saudade, como coisa morta, extinta, ultrapassada. Ao contrário, nossa Gare da Luz não cede, não se entrega; aguenta a passagem do tempo: É um ícone bandeirante, a simbolizar a base da voluta, daquela espiral do quarto centenário, marca do indomável surto de progresso iniciado ainda nos tempos coloniais, com as intrépidas bandeiras. Aliás, a antiga Província de São Paulo de Piratininga, em cujo brasão de armas já se anunciava a liderança, com o dístico: Non ducor, duco! (não sou conduzido, conduzo!),  tornara-se esteio do Império de Pedro II, após a abolição da escravatura, em 1888. Só as exportações de café, já garantiam essa situação. Pensada inicialmente como grande instrumento de logística veio, com o tempo a ferrovia SPR, transformar-se em transporte de massa. Multidões de trabalhadores usam, hoje, seus trens para a Capital em demanda do Metroviário.

E, soberana, a Estação da Luz, malgrado sua antiguidade, mantém-se garbosamente de pé, funcionando bem desde que os ingleses, construtores da São Paulo Railway (a SPR), garantiram esse meio de transporte, ao concluíram a ferrovia Santos a Jundiaí, por volta de 1863 da qual, por concessão imperial, passaram a cuidar da manutenção e da reforma e embelezamento da grande Estação da Luz, entregando, cerca de 40 anos depois da primeira inauguração, a nova Estação, no início de 1900.

Desde meus tempos de menino, ela já me impressionava. Trabalhando já para o Jornal O Borda do Campo, levava matéria para publicação do hebdomadário. Era 1948 dos meus 12 anos. Seguindo para São Paulo no trem subúrbio, pela manhã,  eu sentia arrepios, assim que a locomotiva ingressava na Estação da Luz: era como adentrar no jorro da pujança paulistana. Aquela agitação geral do entorno, com o vozerio dos pregões e o chiado quase gritante da locomotiva a vapor, invadiam-me a visão o burburinho rumoroso e o aroma daquela São Paulo apressada, cheirando a café!

Saudosismos à parte, o gigante surgia e crescia, o mundo do trabalho esbanjava energia à minha frente: vida febril, de intenso labor e calor humano, coroada pelo vai vem constante das multidões: vendedores ambulantes a gritar suas ofertas, muita gente indo e vindo de fábricas, do trânsito contínuo e barulhento dos bondes, do animado comércio, dos arranha-céus de dar vertigem!  Era São Paulo, cheio de movimento e turbulento progresso, dando lugar a uma pressa humana que se tornaria seu modismo tradicional: ninguém pode perder tempo!

Hoje, amigo da mansidão e de todas as literaturas, enamorado das excelências de nosso idioma pátrio, brindo ao renascimento do Museu da Língua Portuguesa, a partir de maio de 2018. É hora, pois de revermos, sem mais delongas, a maravilhosa obra moderna da fênix rediviva, do novo Museu, com suas novidades lusófonas que certamente orgulharão os que amam de verdade a nossa bendita e valorosa  Língua Portuguesa, idioma com que cantam, em prosa e verso, mais de 270 milhões de pessoas espalhadas pelo Planeta, honrando-a e fazendo-a evoluir e alcançar excelências. “Última flor do Lácio, inculta e bela” no ver do grande poeta, Olavo Braz dos Guimarães Bilac.

Das excelências que admiro, desde os fins da década de 1950, tempo de meu saudoso Curso Clássico na Escola Estadual Américo Brasiliense, de Santo André, lembro-me de muitas, em prosa e em verso, que, por serem notáveis, mereceriam toda uma antologia, em vários tomos.

Assim, como  homenagem à nossa língua portuguesa, vamos destacar algumas excelências que revelam a sua grandeza, sua beleza e o notável instrumento de comunicação que é, mostrando dotes de suavidade, eloquência, precisão, clareza, elegância, concisão, originalidade e relevo, na arte do bem falar e escrever!

Particularmente, aponto um texto, muito interessante, de Francisco Rodrigues Lobo, (in Língua Portuguesa, de Valter Wey), escritor português, nascido em Leiria em 1580 e falecido precocemente em 1622, vítima de um naufrágio.  Discípulo de Camões e notável novelista e poeta lírico, Rodrigues Lobo fez, na Literatura Portuguesa, a transição do Classicismo Quinhentista para o período Barroco. Foi autor de várias obras, entre as quais, Cortes na Aldeia e Noites de Inverno, que contém informações pedagógicas e arte poética de qualidade, onde se insere o trecho, que é uma espécie de desagravo contra os detratores do nosso idioma no seu próprio berço, Portugal. E vem sob o título de  Diálogo:

“Uma noite de novembro, está Leonardo à mesa, quando recebe a visita de Píndaro e Solino. Logo após aparecem o Doutor e D. Júlio. Todos juntos, ao lado do fogo, nessa fria noite em que a Aldeia estava feita Corte, começam a conversar. Disse Leonardo: (. . . ) Quero que passemos adiante e, por me fazerdes mercê, que me ensineis se na prática, em voz e escritura considerada, tem bom lugar a nossa língua portuguesa; porque ouço de má vontade e alguns naturais que tratam mal dela e a condenam por grosseira e limitada.

– Uma cousa vos confessarei eu, senhor Leonardo (disse a isto D. Júlio): que os portugueses são homens de ruim língua e que também o mostram em dizerem mal a sua que assim na suavidade da pronunciação como na gravidade e composição das palavras, é língua excelente. Mas há alguns néscios que não basta que a falem mal, senão que se querem mostrar discretos dizendo mal dela; e o que me vinga de sua ignorância é que eles acreditam na sua opinião, e os que falam bem desacreditam a ela e a eles.

– Bravamente é apaixonado o senhor D. Julio (acudiu o doutor) pelas cousas da nossa pátria, e tem razão que é dívida, que os nobres devem pagar com a maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons argumentos com que alguns querem provar que é essa:  antes (ela) é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver, e acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura. Para falar é engraçada (graciosa), com um modo senhoril; para cantar é suave com um certo sentimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões (justificações) e as sentenças (juízos); para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronúncia não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem arrancar as palavras com veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da latina, a origem da grega, a familiaridade da castelhana, a brandura da francesa, a elegância da italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé de sua antiguidade. E se à língua hebreia pela honestidade das palavras chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja das palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que se diga tudo, só um mal tem, e é que pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte!

– Folguei estranhamente de vos ouvir (disse Solino), por não ficar tão covarde como até agora estava, em ouvindo murmurar da língua portuguesa; e não ousava dizer minha opinião, a qual cuidava que me nascia do amor que lhe tenho e que cada um tem às suas coisas, como o corvo aos filhos, e Píndaro às suas trovas.”

Notem, caros leitores, em meio ao texto, primeiro a delicadeza rica da série de versos em redondilha maior, com rima (a-b-b-a-b):

branda para deleitar

grave para engrandecer

eficaz para mover,

doce para pronunciar,

breve para resolver (!)

 

E, segundo, que também se deve assinalar a compreensão de palavras do texto: quando diz engraçada: é que possui graça, que é graciosa; razões: são justificações; juízos, usado como sentenças; opiniões: são pareceres, jurídicos ou não; folgar: ter o prazer.

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Naturalmente, as excelências se multiplicam, razão por que estendemos a outras, a seguir, como parte de um dos notáveis Sermões do Padre Antonio Vieira, ao responder à pergunta: Que é a  Alma? Como se pode vê-la?

            “Quereis ver o que é uma alma? Olhai para um corpo sem alma: se aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências? Foram-se com a alma, porque eram suas. A retórica, a poesia, a filosofia, a teologia, a jurisprudência, aquelas razões tão fortes, aqueles discursos tão deduzidos, aquelas sentenças tão vivas, aqueles pensamentos tão sublimes, aqueles escritos humanos e divinos, que admiramos e excedem a admiração: tudo isto era a alma.

            Se o corpo é dum artífice, quem fazia viver as tábuas e os mármores? Quem amolecia o ferro, quem derretia os bronzes, quem dava nova forma e novo ser à mesma natureza? Quem ensinou naquele corpo regras ao fogo, fecundidade à terra, caminhos ao mar, obediência aos ventos, e a unir as distâncias do universo e meter todo o mundo venal em uma praça? A alma.

            Se o corpo morto é de um soldado, a ordem dos exércitos, a disposição dos arraiais, a fábrica dos muros, os engenhos e máquinas bélicas, o valor, a bizarria, a audácia, a constância, a honra, a vitória, e levar na lâmina duma espada a vida própria e a morte alheia;  quem fazia tudo isso? – A alma.

            Se o corpo morto era de um príncipe, a majestade, o domínio, a soberania, a moderação no próspero, a serenidade no adverso, a vigilância, a prudência, a justiça, todas as outras virtudes políticas com que o mundo se governa, de quem eram governadas e de quem eram? Da alma.

            Se o corpo é dum santo, a humildade, a paciência, a temperança, a caridade, o zelo, a contemplação altíssima das coisas divinas, os êxtases, os raptos, subindo o mesmo peso do corpo e suspendido no ar; que maravilha! Mas isto é a alma.

            Finalmente, os mesmos vícios nos dizem o que ela é. Uma cobiça que nunca se farta, uma soberba que sempre sobe, uma ambição que sempre aspira, um desejo que nunca se aquieta; uma capacidade que todo o mundo a não enche, como a d´Alexandre; uma altiveza como a de Adão que não se contenta menos que com ser Deus: tudo isto que vemos com os nossos olhos, é aquele espírito sublime, ardente, grande, imenso: é a alma. Até a mesma formosura que parece dote próprio do corpo, e tanto arrebata e cativa os sentidos humanos, aquela graça, aquela proporção, aquela suavidade de cor, aquele ar, aquele brio, aquela vida: que é tudo, senão a alma? E se não, vede o corpo sem ela. Aquilo que amáveis e admiráveis, não era o corpo, era a alma; apartou-se o que se não via, ficou o que se não se pode ver. A alma levou tudo o que havia de beleza, como de ciência, de arte, de valor, de majestade, de virtude; porque tudo, ainda que a alma não se via, era a alma”.

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Luís Vaz de Camões, o gênio genioso…

Como não podia deixar de ser, na vida e obra do maior poeta e sem exagero, o responsável por aperfeiçoar e enriquecer nossa decantada Língua Portuguesa, Luís Vaz de Camões, tanto com Os Lusíadas, quanto com sua obra Lírica, na qual cantou a graça feiticeira da menina dos olhos verdes, imortalizada em várias das redondilhas e onde se incluem tantos e tão famosos sonetos, qual numeroso rebanho de ovelhas puras, sem manchas,  que surgem como que a atropelar-se para nos convencer e nos revelar qual é o mais senhoril, qual o mais mimoso, qual o mais vigoroso, qual o autobiográfico, qual o mais apaixonado, qual o severo autocensor de seus confessados erros humanos, qual o que mais encanta e canta para sua amada, Catarina de Ataíde, muito loura de olhos da cor do céu, qual o que chora a perda desse amor, qual o que lamenta as desditas de seu frágil, mas amado Portugal, tudo para que se eleja  apenas um a que daremos nosso espaço e comentários.

Nossa escolha recai num soneto em que, já maduro e magoado pelos anos de dificuldades, Camões se penitencia de seu destino infeliz e de seu próprio gênio áspero, que não perdoa e se inclina às vinganças, o que lhe impôs cumprir tantas penalidades que maiores males lhe acarretam, ao longo de sua existência, desventurada, pobre e errante. Assim viveu, assim morreu.

Sempre genial, entretanto, neste soneto diz o poeta, com sublime propriedade:

 

Erros meus, má fortuna (1), amor ardente

em minha perdição se conjuraram;(2)

os erros e a fortuna sobejaram,

que para mim, bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente

a grande dor das coisas que passaram,

que as magoadas iras (3) me ensinaram

a não querer  já nunca ser contente.

Errei todo o decurso de meus anos; (4)

dei causa a que a Fortuna castigasse

as minhas mal fundadas esperanças (5)

De amor não vi senão breves enganos, (6)

Oh! quem tanto pudesse que fartasse (7)

este meu duro gênio de vinganças! (8)

 

Aqui se encontram, diletos leitores, a confissão e a contrição, o arrependimento pessoal do grande poeta, voltado para seu próprio interior, ensimesmado, abatido pelas desditas que determinaram sua perdição, o que aceita ser conjuração de seu destino (fortuna), com o apoio de seus erros e de  seu amor ardente.

É crença nossa que, no fundo de nossa alma, cada um de nós sabe e conhece seu próprio valor, enquanto nossa consciência nos acusa por violações da ética. Camões, gênio do classicismo, dono de viva inteligência, e grande cabedal de cultura, não era diferente. Tinha consciência de seu valor como poeta e humanista sábio mas, também, se ressentia de suas fraquezas como ser humano.

Profundo  conhecedor da mitologia clássica (grega) e da língua latina, muito culto em outras artes, trouxe fortuna e muitos outros vocábulos do léxico latino, para enriquecer o vocabulário da língua portuguesa. Em muito feliz hora o fez, afortunadamente. Mas, o reconhecimento  dessa grandeza ainda não ganhou foros de verdade. Quantas vezes ouvimos aborrecidos comentários sobre sua obra!

Já, no primeiro quarteto exposto, Camões se anuncia autobiográfico: alude a uma (virtual) conjuração contra si, orquestrada pelo destino (fortuna) mal intencionado, aproveitando-se de seu inocente “amor ardente” e de seus “erros” humanos. Por isso, comenta que esses erros e o destino (fortuna) estavam sobrando, pois, para sua vida, lhe bastaria o amor somente

Luís Vaz de Camões, cavaleiro fidalgo e frequentador do Paço Real, deve ter sido mesmo pessoa de gênio bastante difícil e explosivo; e de estopim curto! Por qualquer ofensa ou alusão maldosa, ia à desforra, para vingar-se. Era espadachim e, com certeza, metia-se a valente e teimoso brigador a desafiar seus desafetos às liças, a julgar pelas penas de prisão que lhe foram impostas e teve de enfrentar, por ordens palacianas. Perdoado, uma vez, Camões preferiu servir militarmente Portugal na África, onde na luta, perdeu o olho direito. Cumprida essa obrigação com o Reino, retornou e sentiu-se rejeitado no Paço Real, como cara-sem-olhos. Decidiu, então, seguir mais tarde,  para Goa, na Índia, onde serviu em tarefas jurídico-administrativas. Mas, era, por outro lado, um jovem sinceramente apaixonado por sua pretendida donzela, Catarina de Ataíde, a quem dedicava aquele amor ardente.

No segundo quarteto, o poeta revela que o sofrimento o fizera aprender, com as magoadas iras, a não querer mostrar contentamento; e confessa ter errado muito durante sua vida, provocando o destino (a fortuna) a castigar suas frágeis esperanças.

Sentindo-se vencido pelo destino infeliz, queixa-se que, de amor não viu senão breves enganos, aludindo certamente a furtivos olhares e poucas palavras trocadas com a mulher que amava e que acreditava retribuir-lhe o sentimento, quando se viam,  em mui raras oportunidades, no Paço Real.

Por fim, Camões lamenta que não houvesse alguém (quem tanto pudesse que fartasse), ou seja, que consumisse o confessado (duro gênio de vinganças), tido e havido como se fora um vício insidioso, de que o poeta não conseguia livrar-se.

Enfim, é de considerar-se muito lindo, tudo isso, não? Uma verdadeira excelência de nossa bela língua portuguesa. Sempre muito atual em seu inviolável conteúdo, mesmo passados já quase 450 anos!

  1. A deusa Fortuna, da Mitologia grega, em latim, significa sorte (boa ou má), destino, sina, azar e circunstâncias [felizes ou infelizes, no plural. São dons da Fortuna: riquezas, posses, bens, e ainda: boa sorte, bom êxito, felicidade. Como sorte, condição, situação (no singular), é encontrada em textos de Cícero, Catão e outros poetas latinos).
  2. conjuraram = conspiração entre os inimigos do poeta: os erros, o destino e o amor ardente.
  3. magoadas iras = ódios acumulados que lhe sugeriam vinganças.
  4. errei todo o discurso de meus anos = cometi erros a vida toda.
  5. minhas mal fundadas esperanças = esperanças frustradas pelos erros e o destino
  6. de amor (de Catarina que amava), o poeta pouco viu = breves enganos…
  7. Desconhecendo o caminho do perdão, o poeta vivia escravizado ao desejo de vinganças.
  8. Como eliminar o maldito e duro gênio de vinganças?

(*) Celso de Almeida Cini é advogado, escirtor, memorialista, professor de idiomas, membro da Academia de Letras da Grande São Paulo, ocupante da Cadeira 37- Patrono: Afonso Schmidt

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