Patrono: Judas Isgorogota
Cadeira 18
BIOGRAFIA
- Guaraciaba Gissoni, começou a escrever, ainda menina, sobre lugares e situações que via nos filmes e nos livros que lia. Essa vivência e a leitura avivaram o interesse pelos aspectos sociais e a percepção da grande distância entre sonhos versus a dura realidade.
É poliglota, diplomada em língua italiana pelo Instituto Cultural Ítalo-brasileiro e pelo Instituto Dante Alighieri em Milão. Francês em Université de Nancy – Literatura e Civilização Francesa. Sua obra se inspira nos “ignóbeis problemas das mulheres” tendo editado obras dedicadas a todas as Evas.
BIBLIOGRAFIA
1) Eva’s – contos do cotidiano, 2020
2) Eva’s por Ela – 2022
Pronunciamento de apresentação de Guaraciaba Gissoni na Academia de Letras da Grande São Paulo, proferida pela Acadêmica e Presidente Maria Zulema Cebrian.
Boa noite senhoras e senhores
“Ao ler o livro “O Egípcio” de Mika Waltari, me deparei com a apresentação do personagem Sinuhe. Conto-lhes o que me ficou na memória: “Eu, Sinuhe, não escrevo para a glória dos Deuses da terra de Kan, porque estou cansado de deuses, tampouco escrevo por medo ou qualquer esperança no futuro, escrevo por mim, apenas”. É apenas por minha causa que escrevo”.
Sinuhe
Numa manhã ensolarada, o telefone tocou e uma voz feminina me disse:
— “Bom dia”!
— A senhora não me conhece, sou Guaraciaba Gissoni, filha de Rinaldo Gissoni. A gerente da Livraria Siciliano, de Santo André, me indicou seu nome para que pudéssemos conversar sobre as edições dos livros de meu pai – Rinaldo Gissoni.
Uma longa e agradável conversa fluiu por bom tempo, tive, naquele momento, déjà vu. Marcamos uma reunião na editora: Gissoni, Guará e eu.
Sem imaginar que naquele momento se iniciariam duas grandes amizades que nos tornariam companheiras na caminhada. Juntos os três nos transformamos inseparáveis e confidentes, eu editando as obras de meu querido amigo e saudoso Rinaldo Gissoni de quem me tornei editora e com Guaraciaba Gissoni, uma grande amizade e cumplicidade nasceu desse trabalho maravilhoso tornando-se, além de revisora das obras de seu, pai, passou a trabalhar em minha editora e, depois aqui em nossa Academia. E lá se vão 23 anos em que unidas pelo trabalho e pelas afinidades na arte de escrever e pela contumaz vontade de aperfeiçoarmos nosso trabalho através da literatura desfrutamos juntas de bons momentos.
Apresentadas as circunstâncias em que o destino prazerosamente cruzou nossos caminhos vou-lhes falar da Novel Acadêmica.
Conviveu desde tenra idade com a literatura por haver sido apresentada aos livros e revistas infantis aos oito anos de idade. Depois a descobriu a biblioteca de seu pai e passou a ler os clássicos de Graciliano Ramos, Jorge Amado entre tantos e ávida devoradora dos textos jornalísticos passou a ler no “Última Hora” onde Nelson Rodrigues escrevia suas crônicas e contos.
Poliglota, diplomou-se em língua italiana pelo Instituto Cultural Ítalo-brasileiro e a aprimorou pelo Instituto Dante Alighieri em Milão. Tem formação em francês pela Université de Nancy no Curso de Literatura e Civilização Francesa. Sua inquietude intelectual, a levou a estudar na Escola Panamericana de Arte e, diplomou-se em decoração.
Morou em diversos estados do Brasil, Minas, Bahia, Santa Catarina e São Paulo e, sua estadia na Europa possibilitou-lhe comparar diferentes realidades e desafios agitando sua criatividade.
Começou a escrever, ainda menina, descrições dos lugares que via, imaginava e, depois, adolescente passou a escrever histórias de príncipes em cavalos brancos e princesas, cujos vestidos eram idênticos aos filmes que assistia e nas histórias que lia. Essa vivência e a leitura avivaram-lhe o interesse pelos aspectos sociais e a percepção da grande distância entre sonhos versus a dura realidade.
Terminado o curso de História e Literatura Francesa, escreveu alguns contos em francês, mais tarde observadora da realidade se inspirou e editou dois livros de contos dedicados aos “ignóbeis problemas das mulheres”.
Sua obra dedicada a todas as Evas são um aprendizado e eu lhe agradeço em nome delas.
Bem vinda, estou certa de que sua presença honrará e nos ajudará a elevar a cada dia o nome de nossa instituição.
A ACADEMIDA DE LETRAS DA GRANDE SÃO PAULO A COLHE COM UMA SALVA DE PALMAS
Maria Zulema Cebrian
Presidente ALGRASP
Pronunciamento de posse de Guaraciaba Gissoni à Academia de Letras da Grande São Paulo, em 29 de junho de 2023, na Cadeira 18, Patrono Judas Isgorogota.
Ilustríssima Sra. Maria Zulema Cebrian, insigne Presidente da Academia de Letras da Grande São Paulo. Minha Madrinha
Digníssimos Participantes da mesa e Autoridades presentes
Caríssimos Acadêmicos
Queridos amigos, amigas, irmãos e familiares. Ademir
Boa Noite
Obrigada por terem deixado o conforto de seus lares para participarem deste momento tão especial para mim.
No final do célebre conto filosófico Candide, o escritor francês Voltaire, nos dá um conselho que procuro seguir, pois acredito ser bastante eficaz: Cultivai vosso jardim; especificando que o Jardim do Éden não foi criado para que o homem encontre descanso, mas para que ali trabalhe para exercitar seu talento, e cultivar seus amigos.
Ao ser convidada para fazer parte da Academia de Letras da Grande São Paulo, não titubeei, pois vivi desde o primeiro momento a sua história. Foram anos com muitas mudanças de endereço pelo ABC paulista até que, em 10 de outubro de 2002, Gissoni e seus companheiros foram acolhidos pelo então Prefeito Luiz Olinto Tortorello, de São Caetano do Sul.
O sonho tornou-se realidade e segue vivo, graças ao apoio da Prefeitura de São Caetano do Sul, na pessoa de José Auricchio Junior, atual Prefeito da Cidade.
Não posso deixar de citar a dedicação das escritoras Gioconda Labecca e Maria Zulema Cebrian que, assessoradas por Maria Aparecida Mancini Fedatto, continuaram o árduo trabalho de manter vivo e pulsante o amor pela literatura brasileira.
Pedi que meu patrono, fosse o escritor Judas Isgorogota, que contempla a Cadeira 18. Este poeta, com certeza, enobrece o elenco dos 40 patronos brasileiros que apadrinham os escritores desta Casa, pois à medida em que se aprofunda em sua história, percebe-se quanto é importante, rica e profícua.
Pseudônimo do jornalista e poeta Agnelo Rodrigues de Mello, nascido em Lagoa da Canoa, distrito de Traipu, Alagoas, em 15 de setembro de 1898.
Casou-se em 1933 com a escritora e professora Nazira Cesar de Mello com quem teve uma filha chamada Rima-Augusta — Rima, como ele dizia, para não se ter dúvidas de que era filha de um poeta. Faleceu na cidade de São Paulo, em 10 de janeiro de 1979.
Foi considerado na época, um dos mais admiráveis representantes da inteligência nordestina em São Paulo.
Filho de indígenas, aos seis anos foi levado pelos pais, do sertão para Maceió. Ali viveram tempos de penúria, pois como ele dizia com orgulho, seu pai era sapateiro. Estudou no Colégio Sagrado Coração de Jesus e no Instituto Benjamim Constant. Após perder o pai, por volta dos quinze anos, foi para Recife onde morou e trabalhou por algum tempo.
Ao voltar para Maceió estreou na literatura com “Caretas de Maceió”, que eram poesias humorísticas com críticas às personalidades da época. Eram publicadas inicialmente no jornal humorístico “O Bacurau”. Continuando sua carreira jornalística, foi para o jornal Correio da Tarde e para o Jornal de Alagoas.
Suas primeiras tentativas poéticas iniciaram-se durante a primeira grande guerra. Admirava os poetas Bocage e Augusto dos Anjos e deles procurava estudar as características de suas poesias — ritmo, imagens e maneiras de escrever.
Foi um dos fundadores da “Academia dos Dez Unidos” que, em Maceió, refletia a revolução literária paulistana de 1922.
Aos 24 anos mudou-se para São Paulo, seguindo sua vida jornalística. Na época do “Movimento Literário” que aconteceu em São Paulo, realizou uma enquete, onde foram ouvidas importantes personalidades: Monteiro Lobato, Guilherme De Almeida, Menotti Del Picchia, Silveira Bueno, Plínio Salgado, Paulo Setúbal.
Por esta época publicou seu primeiro livro — Divina Mentira. Em seguida publicou o livro Recompensa que recebeu menção honrosa da Academia Brasileira de Letras, e teve três edições sendo que uma delas se esgotou em São Paulo. Cito, entre tantas, algumas outras suas obras: Desencanto, Os Que Vêm de Longe, João Camacho. Diversos livros de poesias, inclusive poesias infantis, e uma novela.
Em 1957 conheceu a fama no Brasil e no exterior onde, além do lançamento do livro Recompensa em Italiano, teve diversas de suas poesias publicadas em muitos outros idiomas.
Ganhou várias menções honrosas e prêmios, inclusive do Pen Club de São Paulo, da Academia Brasileira de Letras e o Jaboti. O primeiro em 1927 e o último, em 1961.
Autor de diversas peças musicais, organizou o “primeiro concurso de música brasileira”, promovido pela rádio Gazeta, que premiou com medalhas de ouro os artistas vencedores. Alguns deles aí obtiveram sua primeira oportunidade.
Conto-lhes a ascendência deste homem, com suas próprias palavras:
“Aconteceu no começo do século XIX.
Um caçador encontrou nas matas de Palmeira dos Índios, na então Província de Santa Madalena das Alagoas, uma indiazinha dentro do um samburá que pendia de uma carnaubeira… devia ter alguns meses de idade. Os pais, que teriam ido à caça, ali a deixaram, a coberto de dolorosas surpresas. O samburazinho, porém, aguçou a curiosidade de um caçador, que carregou consigo a inocente filha dos terríveis “papa-bispos” do Cururipe. Anos depois, fez que ela se casasse com um indígena das margens do São Francisco, em Traipu.
Descendo dessa indiazinha. Sou, portanto, um brasileiro que pode se orgulhar de ter uma “árvore” genealógica, da qual é figura principal a própria árvore — uma carnaubeira, que é ao mesmo tempo, símbolo majestoso da resistência brasileira contra todas as intempéries.”
E… como nasceu o pseudônimo Judas Isgorogota?
Bem no início de sua carreira, ao publicar o soneto “Madrepérola” Agnelo Rodrigues de Mello, foi acusado de plágio pelo também poeta Rodriguez Melo, que sem muita demora reconheceu que o plágio fora apenas no nome.
Nosso poeta explica sua escolha:
“Judas, na tragédia bíblica, simboliza o ‘homem possível’, da mesma maneira que Jesus representa o ‘homem impossível’, ou seja — o ‘homem perfeito’. Judas bem poderia servir de nome de guerra, para um poeta que queria judiar da humanidade. Motivo pelo qual assinei, Judas Isgorogota. O Isgorogota nada mais era que simples corruptela de Iscariote. E então nasceu Judas que acabaria sendo mesmo um Judas, traindo o próprio criador, isto é, me traindo e tomando o meu lugar, liquidando de uma vez por todas, com o meu nome…
Por fim o apresento a vocês através de um seu poema.
RECOMPENSA
Certa manhã deixei a minha casa…
Cinco e meia, talvez,
talvez seis horas da manhã da vida…
Um sol vermelho, de um vermelho brasa,
por sobre a estrada adormecida,
em completa mudez,
derramava-se todo
numa tonalidade futurista…
Era manhã quando saí de casa…
E o sol, vermelho, de zarcão, dizia:
— “Para onde vai esse menino doido
que nem espera que lhe venha o dia?”
Cheio de minha fé, saí disposto
para a conquista
da primeira curva
do caminho; porém,
logo à tardinha o sol esmaeceu
e eu vi que havia rugas em meu rosto
e a minha vista
já ficava turva
como a vista do sol que envelheceu…
e passo a passo, envelheci também…
De volta, meus sonhos apagados
joelhos vertendo dor, pés descarnados,
sem um gesto, entretanto, de revolta,
ando à procura de uma cova rasa
onde eu, mártir da fé, pobre e infeliz,
possa, enfim, encontrar a recompensa
de uma conquista imensa
que não fiz!
Era manhã quando saí de casa.
TEXTO QUE MAIS GOSTA
VIDA
Na solidão da minha chegada,
o primeiro beijo
o primeiro afago
recebi de ti, oh! minha mãe.
Na solidão da minha partida,
o último beijo
o último afago
recebi de ti, oh! minha filha.
Guaraciaba Gissoni
Livro Eva’s — Contos do Cotidiano
PORVIR
Exaurida abriu a porta de sua casa. Sala, quarto, cozinha. Dirigiu-se ao banheiro — vaso sanitário, pia pequena, chuveiro barato, água fria.
Sentou-se, tirou os sapatos cambaios. O dia fora árduo, nada conseguira, apenas a frase “não há vaga”. Precisava comer alguma coisa. Na geladeira, solitário ovo e o resto de arroz cozido. Colocou-os na pia. Pouca coisa para o vazio no estômago: — melhor que nada —, pensou. No parapeito da janela um vasinho com alguma erva. Próximo ao fogão pequeno vidro com sal, noutro um tanto de óleo.
Um prato, um garfo. Quebrou o ovo — o amarelo vivo lhe trouxe água à boca. Picou a salsinha, colocou uma pitada de sal, bateu até que se formasse uma bela espuma, misturou o arroz. Untou a frigideira, aqueceu-a, colocou a mistura.
Sentou-se à mesa admirando as cores no prato azul — verde, amarelo e branco.
— Obrigada Senhor por matar minha fome por mais um dia. Amanhã…quem sabe?… será mais fácil.
Eva’s por Ela
Guaraciaba Gissoni
YACABA, o cão pastor
A meu pai
Esse era o seu nome. Estava muito doente e seu dono, Keizi, também.
Era um tempo em que não existiam pets shops. Os cachorrinhos não eram vendidos. As ninhadas eram doadas. Não se dava muita importância às raças. Uma criança ganhava seu animalzinho, nomeava a seu bel prazer, acalentava, e nutria com alimentos caseiros. Enfim, o amava e era amado, tanto quanto, nestes tempos modernos, se ama e se é amado.
Hoje, compram-se os pets e, lógico, exige-se pedigree. Eles já vêm com seus nomes próprios, de família. São os lhasas apsos, os yorkshires, bassets, pastores alemães, filas, os shars peis, aqueles de peles muito enrugadas, bem engraçados é bom que se diga, os perigosos(?) pit bulls, bulldogs, rottweilers, beagles ingleses e muitas outras raças. Há ainda os adotados, são os vira-latas, mestiços ou abandonados.
São muito amados, bem cuidados, treinados, até roupas lhes vestem, esquecendo-se que a natureza já os dotou com a capacidade de se adaptarem aos seus humores. Dormem com seus donos, em suas camas. São tosados, unhas cortadas. As cadelinhas até as têm pintadas.
Mas este preâmbulo é apenas para lhes contar uma história dos tempos em que, na minha cidade, nem se cogitava em medicina-veterinária, os cãezinhos eram tratados com os remédios dos humanos. Uma história do século passado, anos sessenta.
Quando ali chegou, ainda filhote, notou que o garoto tinha algo diferente. Yacaba era um pastor alemão, de uma ninhada de oito cãezinhos. Muito inteligente e bonitinho. O pequeno Keizi ficou radiante. Batia palmas, meio que desordenadamente, ria, balbuciava palavras que não se entendiam, mas entre todas as manifestações uma ficou bem clara YACABA. Coisa engraçada, não era nome de cão, não tinha significado, no entanto, assim foi batizado.
Keizi, quando nascera, não tivera a mesma sorte de Yacaba. Devido a um problema na hora do seu nascimento, ficara sem respirar por um minuto, acarretando-lhe uma disfunção cerebral que, pouco a pouco, ia lhe tolhendo os movimentos. Yacaba não compreendia porque o pequeno nunca saía à rua, não conseguia correr, não falava muito bem. Não soltava pipas, não jogava bola.
O tempo corria, Yacaba crescia, belo porte, forte como todo cão pastor deve ser, Keizi, no entanto, sentia cada vez mais dificuldade de locomoção. Sua fala também não evoluíra como se esperava. O cão e seu dono eram inseparáveis. Vez ou outra, Yacaba resolvia fazer seu amiguinho correr, empurrava-o com o focinho e Keizi ria feliz, mas suas pernas não obedeciam ao comando de seu cérebro. Caía, sua mãe vinha, levantava-o e brigava com Yacaba que não entendendo o porquê da admoestação, afastava-se com o rabo entre as pernas. Humilde deitava-se num canto, por pouco tempo, pois Keizi o chamava e lá ia ele feliz da vida.
Entendiam-se perfeitamente. Por alguns anos, o garoto apoiava-se no cão para andar. Mais tarde, Yacaba passava os dias junto ao amigo que dependia de uma cadeira de rodas. E o tempo passou. Keizi sofria de paralisia cerebral. Era inteligente, mas seus músculos não obedeciam aos comandos do cérebro.
Um dia, Yacaba adoeceu, quando Keizi tinha quinze anos,. O rapaz ficou inconsolável. Não saía de perto do cão, não queria se alimentar. Sua família, sem grandes recursos, titubeava em chamar um médico-veterinário, pois a consulta deveria ser cara. E, onde acharia um?
— Por que vocês não procuram o veterinário lá do Campestre? Tenho certeza que ele virá, ótima pessoa, muito competente. É… com certeza virá ver o Yacaba.
Assim fizeram. Ligaram para a casa do médico, que sensibilizado com a história de Keizi foi visitá-lo. Chegou num jipe verde, capota de metal, meio velho, mas bem conservado. Seu aspecto era jovial, por volta dos 45 anos, cabelos começando a encanecer, bigode preto, claudicava um pouquinho; não muito alto, perto de um metro e setenta. Vestia jaleco e calças brancas. Era realmente uma figura agradável. Mas o que mais chamava a atenção era o seu olhar. Olhos castanhos, puxados para o verde, transmitiam uma ternura, um amor fraterno que a todos conquistava.
— Bem vamos ver o meu cliente — disse sorrindo para Keizi, que de sua cadeira de rodas o olhava cheio de admiração.
Yacaba estava realmente muito doente. O médico o examinou exaustivamente, e deu sua opinião.
— Além da idade avançada para um cão, ele apresenta uma doença incurável. Mas, Keizi, vamos tratá-lo com muito carinho. Vou receitar umas vitaminas e um remédio para que não sinta muita dor.
Com os medicamentos conseguiu prolongar por algum tempo a vida do cão e, em suas visitas, que foram muitas, conversava com Keizi, contava histórias, falava de Deus, falava do amor que os cães dedicam a seus donos. Incentivava o garoto à leitura. Ensinou-lhe mesmo a rimar. Não cobrava essas visitas. Aliás, nem a primeira cobrou, pois notara que a família lutava com dificuldades.
Uma tarde, quando o doutor chegou, Keizi estava inconsolável, Yacaba estava morrendo. Ali ficou, o agora seu amigo veterinário, junto ao cão, até o fim. E para consolá-lo, dizia:
— Keizi, você sabe que todos nós, inclusive o Yacaba, temos uma missão a cumprir. Às vezes esta missão é difícil, não compreendemos o porquê do que acontece conosco. Outras, como a do Yacaba, é fácil, pois ele teve a sorte de encontrar como dono um garoto que o amou. Não chore, ele estará olhando por você em outra dimensão. Um dia, quem sabe, não se encontrarão de novo? Vou lhe dar uma sugestão. Enterre seu cão embaixo de uma árvore, num parque ou numa mata, perto de um riacho para que ele volte ao seu habitat natural. Próximo daqui tem uma montanha linda, cheia de árvores, bem no coração da Serra do Mar. Peça a seu pai que o leve até lá, enterre ali seu amigo.
Com isso, conseguiu acalmar Keizi. Assim foi feito. O cão foi enterrado ao pé de uma árvore secular, nas margens de um pequeno riacho, num local muito bonito, perto de Paranapiacaba.
O tempo passou. A família esqueceu-se do médico.
Keizi foi definhando. Um dia, com a voz cansada, disse à sua mãe que quando se fosse queria ficar junto a Yacaba, perto daquele riacho, sob aquela árvore, que o doutor tinha falado.
Ele se foi numa tarde de primavera. A família, seguindo a tradição japonesa cremou o corpo e, obedecendo à sua vontade, numa cerimônia singela, colocou as cinzas de Keizi no local onde estava o cão, ao pé da mesma árvore, perto de onde corria um riacho de águas límpidas.
E o médico, por onde andaria? Provavelmente, cuidando dos animais em uma outra dimensão ou, quem sabe, fazendo poesias.
Guaraciaba Gissoni
Eva’s — Contos do cotidiano