Patrono: Cora Coralina
Cadeira 36
BIOGRAFIA
Silmara Rascalha Casadei é autora de 32 livros infanto-juvenis
Membro da Academia de Letras da Grande São Paulo.
Membro do Conselho de Paz do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo
Mestre e Doutora em Educação pela PUCSP, Pedagoga, MBA em Gestão de Pessoas pela FGV.
Foi Curadora da exposição infantil: Porquê? Porque… Os Porquês – SESC.
Diretora Geral Pedagógica do Colégio Visconde de Porto Seguro.
Entre seus escritos estão as Coleções:
- A menina e seus pontinhos: Cortez Editora – 4 volumes
- Coleção Bullying não é brincadeira: Just Editora – 6 volumes
- Coleção Seis razões, em coautoria com Nilson José Machado e Michele Rascalha: Escrituras Editora – 6 volumes.
- Coleção ‘tá sabendo? Em coautoria com Mario Sergio Cortella, com o qual coordena a coleção com outros autores pela Cortez Editora – 4 volumes.
E-mail: silcasadei@uol.com.br
BIBLIOGRAFIA
Poemar – poemas do Mar (Poemas) – 2003;
Poemas do Campo (Poemas) – 2004;
Leia aprendendo a ler o mundo (Infantil) – 2004;
Chinelinhos Brasileiros – 2007;
Seis razões para cuidar bem da Terra (Infanto-juvenil) – 2008;
A menina e seus pontinhos (Infanto-juvenil) – 2008 – 4ª edição;
Quero ter avós – (Infanto-juvenil) – 2010;
Bulliyng não é amor (Infanto-juvenil)- 2011 – 2ª edição;
O pontinho da saudade (Infanto-juvenil) – 2012;
Como um rio: O percurso do menino Cortez (Biografia) – 2010;
Os óculos de Dudu (Infantil) – 2011;
Os lacinhos da Bilu (Infantil) – 2011;
Quando Tomé engordou (Infantil) – 2011;
Meu amigo Cotó (Infantil) – 2011;
A Teca ficou sozinha (Infantil) – 2011;
Gióia – uma cachorra diferente (Infantil) – 2011.
Pronunciamento de Apresentação proferido pelo Presidente da Academia de Letras da Grande São Paulo, Dr. Rinaldo Gissoni, na sessão de posse de Silmara Rascalha Casadei.
Ilustre senhoras e senhoritas, ilustres senhores. Respeitáveis mestres. Dignas autoridades. Dignos diretores de ensino, e dignos trabalhadores da imprensa falada e escrita, também arquitetos da imagem e do som. Distintos acadêmicos presentes. A todos, a nossa saudação, extensiva àqueles que, por circunstâncias especiais acham-se ausentes. A Academia de Letras da Grande São Paulo, hoje no abrigo desta já famosa casa de ensino, reconhecida pela qualidade de suas realizações na arte de ensinar e formar, não ignora que vossa vinda a esta Casa, nesta noite, terá custado algum sacrifício, considerando a distância, o horário e o ambiente, lá fora, de extrema temeridade. A todos o nosso reconhecimento por essa prova de delicado apreço, entremeio, o desejo para um regresso feliz.
Antes de tudo, e privilegiadamente, elevamos o pensamento à Divina Sapiência, que dotou o ser humano de inteligência para alcançar o conhecimento do impossível, e capacidade para distinguir o Bem do Mal. E, de pensamento elevado, manifestamos a nossa humildade e a nossa pequenez diante da incompreensível magnitude da criação dos mundos, dos seres e tudo o mais em matéria e espirito…
Vivemos dias extraordinários que, em face da rapidez da mutação das coisas e dos fatos, pela vontade dos homens, nos assombram. Tudo que nos rodeia é sempre uma novidade e se constitui num desafio.
O progresso cientifico e tecnológico nos tem proporcionado as maravilhas do engenho humano, corroborando, sem dúvida, em parte apreciável, com o pensamento dos antigos. Entre aqueles que contribuíram com a força de seu raciocínio para os geniais impulsos científicos, lembremos Gordona Bruno, o qual, aproximadamente há quinhentos anos, argumentou ser o infinito pois onde termina um universo, porque o Grande Arquiteto não teria construído um só universo, mas milhões de universo… Convencidos dessa concepção, os futuros cientistas, um dia, talvez não tão distantes, conseguirão ultrapassar a barreira do infinito e chegar a outro universo, quem sabe, a uma outra civilização…
Esta aventura não será absolutamente impossível, em vista de que “o movimento para cima, e o movimento para baixo”, segundo Bruno, são contrários… e só o intermédio participa da limitação de um e de outro, sendo, pois, necessário, que o meio seja definido e certo.
Poderá a tecnologia moderna subir ao macrocosmo de outros universos, mas ainda não desceu ao microcosmo, isto é, ao universo também infinito que é o ser humano.
Com relação àquele meio, é a inteligência a se antepor, não a viagens interplanetárias ou a conquista de mundos siderais, mas ao afastamento desse universo onde gravita o sentido de todas as coisas, isto é, o conjunto de todas as paixões, e de todas as ânsias em desvendar o incognoscível que, estando dentro de nós, parece inalcançável.
Já estamos vivendo o choque do futuro por Alvin Toffler, em vista do profundo impacto nas tradições, nos costumes, e nos atributos que nortearam a civilização terrena. As injunções são ilimitadas.
Vemos, por exemplo, a norma de um bem transformada na norma de um mal; a regra de um equilíbrio transformada numa desarmonia, os fundamentos da riqueza da verdade ética destruída por uma falsa ética, ou seja, pela ética descaraterizada.
Ou nos adaptamos, permanecendo inertes entre a figura que avança e a figura que retrai, ou procuramos nos antepor a elas. Este há de ser o caminho, porque somos o meio contra aquelas forças antagônicas. Há mudanças, assim na forma de pensar, com na forma de considerar os sentimentos. Um e outro tornaram-se banais.
Representamos uma entidade que tem a pretensão de se antepor à síntese assombrosa que poderá abalara os conceitos de arte e de beleza nas pressuposições de Alvim Toffler. Disse ele que o resultado da civilização massificada são os novos conceitos de progresso sob a insciência de uma revolução ínsita no antiético, nas atitudes sexuais sem parâmetros, na destruição da estrutura familiar e , principalmente, na disseminação de uma cultura blip, e violenta. A entidade que pretendemos representar quer assumir uma posição razoável, não contra as novas concepções, mas em favor de novas idéias, que sejam variadas, mas com clareza, e construtivas, e grandes na finalidade de aperfeiçoar.
Eis, pois, a Academia de Letras da Grande São Paulo, que há de cumprir a missão de preservar a cultura, enaltecer a figura daqueles que contribuíram para a formação de nosso patrimônio cientifico e cultural e consolidar os nossos sentimentos de amor e de paz. Para isto quer redefinir o seu Quadro Social, com tais membros que, no exercício de seu oficio, expressão o pensamento construtivo e manifestarão os seus apurados sentimentos, tudo para e desenhar o perfil da criatura humana, nos moldes da educação e da poesia.
Uma para forjar o cidadão de amanhã outra, para acariciar a nossa alma…
Eis a razão pelo qual Marina Rolim e Silmara Rascalho Casadei merecem o grau de acadêmicas outorgado pela Academia de Letras da Grande São Paulo. A educadora Silmara, para trabalhar na edificação das características que hão de fazer o verdadeiro perfil do ser humano, aquele ser humano ideal que estará a unir todas as ansiedades e todos os pensamentos positivos num mapa sem as fronteiras da indignidade; e a poetista Marina, para cantar o amor nos ritmos do coração feminino, porque é no coração feminino que está o caos a se encher de sonhos, e de desejos… São os sonhos de justiça humana e de bondade. São os desejos de paz e de puro amor… Com os trabalhos da técnica aperfeiçoada de Silmara e o cascatear de versos apaixonados de Marina, ambas aliadas aos demais membros do Sodalicio, a Academia de Letras da Grande São Paulo sentir-se-á em condições de esagiar mensagens de paz e amor, paz e amor, paz e amor, assim contribuindo para um mundo melhor.
Rinaldo Gissoni
Pronunciamento de Posse proferido pela Acadêmica e Professora Silmara Rascalha Casadei, na Academia de Letras da Grande São Paulo, em 28 de Agosto de 2003.
“Um olhar para Cora Coralina”
Oração aos Moços
Eu sou aquela mulher
A quem o tempo muito ensinou
Ensinou a amar a vida
Não desistir da luta
Recomeçar na derrota
Renunciar a palavras e pensamentos negativos
Acreditar nos valores humanos
Ser otimista
Creio numa força imanente
Que vai ligando a família humana
Numa corrente luminosa
Creio na solidariedade humana
Creio na superação dos erros
E angústias do presente.
Acredito nos moços
Exalto sua confiança,
Generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
E na descoberta de uma profilaxia
Futura dos erros e violências
Do presente.
Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil
Antes acreditar do que duvidar.
Digníssimo Doutor Presidente da Academia de Letras da Grande São Paulo Rinaldo Gissoni, autoridades políticas, religiosas e militares presentes;
Ilustríssimos Senhores Diretores da Unidade Jardim Pueri Domus Professor Daniel Belluci Contro e Professora Márcia Fazzani Contro;
Ilustríssimos Acadêmicos e em especial Poetiza Marina P. Rolim;
Ilustríssimos Educadores;
Senhoras e Senhores convidados;
Queridos Alunos,
Humildemente agradeço a Deus por esta oportunidade, aos meus pais, ao meu esposo Carlos e aos meus filhos Juliana e Carlinhos. Aos parentes e a tantos amigos presentes. Em especial a toda a comunidade da Unidade Jardim Pueri Domus, escola sublime que me ensina a cada dia.
A honra que sinto em ocupar esta cadeira, estendo-a a todos aqueles que acreditam na educação, na cultura, na arte e na música e em todas as formas de expressão doadas por Deus. Quero ser mais uma entre vocês a expandir a intelectualidade deste país, para que este povo seja digno, brilhante como as gotas de orvalho no amanhecer das florestas , conhecedor de seus direitos e deveres e que tenha acesso aos ilustres nomes, seus feitos, seus escritos, seus poemas…
Quero também auxiliar aqueles versos escondidos na gaveta para que sejam distribuídos às mãos de todos como a colheita das flores da primavera.
Ressaltar e enfeitar a estima pela força do elogio a boa ação da criança, a presença da amizade e o olhar altivo dos jovens.
Apresento-lhes nesta noite a poetisa Cora Coralina , patrona da cadeira de nº 36.
Um olhar para Cora Coralina
Escrever a respeito de Cora Coralina não é tarefa das mais fáceis. Não são vastos os seus registros biográficos visto que conheceu o estrelato literário após os 75 anos de idade e lançou em vida apenas seis livros. Entretanto, a dificuldade surge justamente não pela análise bibliográfica que aparece tardia, mas porque nos sentimos incompetentes e incapazes diante de tamanha sabedoria. Como diria Paulo Freire, (me perdoem, sou educadora) “a conjugação viva do verbo esperançar” em que a espera é feita de ações constantes no dia-a-dia, quando se acredita e vive na possibilidade de cada momento.
Cora Coralina nos toca os sentidos quando “degustamos” seu poemas doces e caseiros, quando “folheamos” as páginas dos seus escritos e descortinamos a paisagem do mato, das ruas e becos, da velha casa e das cidades por onde passou. Fortalecemo-nos como mulheres quando ela nos conta da “Aninha abatida e franzina” que se transforma em Cora ( que segundo ela mesma vem do coração) e Coralina ( que é de cor vermelha).
– Cora Coralina é um coração vermelho. -disse ela respondendo e rebatendo a uma afirmação de Drummond, quando este disse que “Cora Coralina é um nome gostoso de se pronunciar: começa aberto como uma rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, sudinando música de sereias antigas e de dona Janaina Moderna”
Realmente, ela representa o coração do Brasil em suas raízes e sentimentos, oriunda de um povo simples e humilde.
Não é minha pretensão aproximar o leitor do pensamento vivo de Cora Coralina, pois todo o seu trabalho o faz por si mesmo, mas sim contribuir para o acesso do nosso povo à cultura brasileira.
Espero, como professora e poetisa, aproximar as pessoas de meu entorno conscientizando-as para apossarem-se daquilo que sempre lhes pertenceu, ou seja, suas heranças culturais e sensibilizá-las para a riqueza que é poder tocar a beleza de almas como a de Cora Coralina, com sua beleza singular e seu espírito sereno que só os bravos possuem.
Conhecê-la é conhecer as etapas de nossa própria vida:
“… Todas as vidas dentro de mim. Sou mãe. Sou avó. Sou bisavó. Sou uma raiz caminhando na terra.”
Espero que, por meio deste pequeno pronunciamento, fique no leitor uma imensa vontade de abrir um livro e ali unir-se por breves momentos à inspiração de um autor.
Abrir livros é adentrar almas e expandir mentes, tendo ainda a grande possibilidade de chegar ao céu do coração daquele que um verso escreveu.
Cora Coralina é um coração cheio de vida, inquieto, corajoso, repleto de verso e de prosa, capaz de “contar velhas histórias de um jeito diferente”.
Cora Coralina é um coração vermelho!
Cora no tempo…
“Venho do século passado
trago todas as idades comigo
e dentro de mim todas as vidas
na minha vida, a vida mera das obscuras.”
A personagem mais ilustre do estado de Goiás, nasceu sob o nome de Ana Lins dos Guimarães Peixoto, no dia 20 de agosto de 1889, na mesma casa que pertenceu a sua família. Filha do desembargador Franscisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto e de Dona Jacintha Luiza do Couto Brandão Peixoto que enviuvou três vezes. Cora era filha do segundo casamento. Seu pai morreria meses depois do seu nascimento. Em casa todos a chamavam de Aninha. Suas irmãs: Vicência, do primeiro casamento e a mais velha, Helena, do segundo casamento, diziam ser a mais bonita de todas. Ana ( Cora Coralina) q diziam ser magra, chorona e feia. Sua mãe a deixou aos cuidados da Vó Dindinha que vivia com a família e que renasceu ao ter Aninha para cuidar.
Ada, a caçula, é a filha do terceiro casamento.
“Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
Abria os olhos para aquele bolo
Que me parecia tão bom e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa
Cortava o bolo com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo
Era só olhos e boca e desejo
Daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
Governava. Regrava
Me dava uma fatia,
Tão fina, tão delgada…
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais! (…)”
Outras pessoas que muito considerava eram a Tia Nhorita e vovó Didinha. Doutor José, seu padrasto, foi o único a compreender sua tendência à literatura e com quem bem se relacionava.
Seu mundo escolar resumiu-se em apenas dois anos tendo como mestra uma professora: Dona Silvina. “Um mundo novo chega através das figuras, num primeiro momento, e depois, através das letras, onde descobre o quanto há de novo e belo nos velhos almanaques empilhados no quartinho de despejo. (…) Aninha se transforma numa leitora apaixonada. Seu mundo não está mais na casa, na mãe, nas irmãs, na avó. Extrapola os paredões, as serras de sua cidade” ( Tahan 1989 ,p.19)
Desde muito cedo escreveu adotando o pseudônimo de Cora Coralina em sua adolescência. Escrevia já aos 14 anos poemas e artigos que enviava ao semanário da cidade. Em 1908 criou, juntamente com duas amigas, o “jornal de poemas femininos” Seu primeiro conto publicado foi intitulado “Tragédia na Roça”. Um breve registro deste tempo consta no anuário Histórico Geográfico e Descriptivo do Estado de Goiás: “Cora Coralina ( Anna Lins dos Guimarães Peixoto) é um dos maiores talentos que possui Goiyas; é um temperamento de verdadeiro artista. Não cultiva o verso, mas conta na prosa animada tudo que o mundo tem de bom, numa linguagem fácil, harmoniosa, ao mesmo tempo elegante. É a maior escriptora do nosso Estado, apesar de não contar ainda com 20 annos de edade”.(Veras:1989, p.9).
Aninha demora a encontrar um pretendente, segundo as tradições da época. Aos dezoito anos conhece José e o interesse é recíproco. Sua mãe alegra-se por desencalhar a filha que “vive no mundo da lua”. Entretanto, a família do rapaz não apóia a idéia de ter como nora uma moça que só sabe fazer versos e que, com certeza, não será uma boa esposa e mãe. Aninha fica desolada.
Aninha é sempre convidada pelo Dr. Acácio, que juntamente com sua esposa oferece serões semanais para recitar alguns poemas. Ana sempre pede-lhe livros emprestados e este, vendo o seu interesse estimula-a para a leitura, encaminhando, inclusive seus escritos para o Jornal Semanal
Aos vinte e três anos conhece o Sr. Cantídio, Chefe da Polícia, que logo lhe demonstra interesse ao perceber em Aninha tamanha inteligência. Todos ficam felizes com o interesse em Cora. Ele começa a cortejá-la com o consentimento de sua mãe. Cantídio, no entanto, guarda um terrível segredo: já fora casado em São Paulo tendo três filhos, e em seguida viveu com uma índia, tendo mais uma filha. A mãe de Aninha ao ficar sabendo pelo Sr. Acácio da história imediatamente, relata à filha impedindo-a de prosseguir com o namoro indecente. Aninha reveste-se de dor, mas não desiste deste romance. Aninha resolve assumir este proibido amor e passa a encontrá-lo às escondidas. Cora engravida e a mãe ao descobrir pensa em escondê-la na antiga casa da fazenda e afastá-la definitivamente deste malfeitor. Eles combinam por meio de bilhetes secretos uma fuga. Assim, Cora Coralina foge com o seu amor numa viagem de vários dias a cavalo e depois de trem para São Paulo. Cantídio ainda pede a Cora se poderia levar com eles sua filha que tivera com uma indígena, pois esta não a quer mais. Cora aceita Guajajarina como sua filha. Em São Paulo Cora encanta-se com a água quente para os banhos, a luz elétrica nas ruas.
Pressa, muita pressa…
Cantídio, seu marido, pois Cora sente-se casada com ele, resolve ter seu próprio escritório e decide instalar sua moradia na Cidade Paulista de Jaboticabal.
“Chegam à noite na cidade e procuram uma pensão para dormir. Logo pela manhã Aninha levanta-se para ver a cidade. Pela janela avista uma rua tranqüila todinha arborizada, muito limpa, muito reta. Nada parecida com as ruas tortas, quebradas, estreitas de sua cidade. (…) O Fundador da cidade foi Pinto Ferreira. (…) Aqui a região é de terra roxa, com lavouras de café, cana e algodão. Algumas fazendas de gado também. O nome é pela existência de muitas jabuticabeiras silvestres que sempre existiram aqui.
• Seremos muito felizes nessa Jaboticabal – disse Cora”..
“As roseiras da cidade! Não há jardim que não as ostente”. ( Talhan 1989,p.117, 122)
“ Cafezal
Canavial
Algodoal
Laranjal
Rosal, roseiral.
Cidade das Rosas
Terra de meus filhos
Onde fiz meu duro
Aprendizado de vida
E relembro sempre
Amigos e vizinhos
Incomparáveis.
Para eles esta página
De humilde gratidão”.
(Jornal “O Combate”:2003)
Cora planta muitas coisas em seu quintal e vai plantando mudas, vai plantando… Seu orgulho , suas rosas..
Nasce a primeira filha: Paraguassu Amaryllis (O primeiro nome é pelo pai que gosta de nomes indígenas e o segundo pela mãe: nome de flor). Seus próximos filhos serão Enéias (que falece aos seis meses) Cantídio, Jacintha, e Isis. Aos poucos vai restabelecendo contato com a família e começa a corresponder-se com a mãe. Aninha aprende cada vez mais sobre direito, profissão do marido, que discute com ela suas defesas. Torna-se uma ávida leitora. Facilmente aprende, memoriza, discursa.Começa escrever, sempre tendo em vista as causas da comunidade, para o jornal “O Democrata” , que tem como seu debatedor o jornal “O combate”. Suas atividades começam a extrapolar o lar. Auxilia a igreja Nossa Senhora do Carmo, próxima a sua casa. É uma verdadeira líder: organiza quermesses, distribuição de leite às crianças pobres e tratamento de saúde para idosos. Aninha convoca a população para tirar as pessoas da rua, não deixando o ônus apenas para o poder público.
Arrecada, distribui, encaminha.
“Vamos acreditar no potencial imenso de nossa gente, do nosso povo, da nossa terra, das nossas tradições e da nossa capacidade de superar os erros que os outros cometeram e que recaem sobre a nação.” (Programa Vox Populi. Rede Cultura de Televisão).
Em seus artigos volta a assinar como Cora Coralina. Devido aos seus movimentos reivindicatórios cresce sua popularidade, o que incomoda o marido que passa a ficar cada dia mais ciumento. Ela escreve muitos versos, mas ele pede que não os mostre a ninguém. Após quinze anos de vida em comum falece a mulher de Cantídio e eles casam-se em São Paulo. Passa-se o tempo e nova gravidez vem surpreender o casal: nasce Vicência que, no futuro, seguiria os passos de sua mãe e escreveria um romance biográfico: Cora Coragem Cora Poesia. Decidem-se por voltar para São Paulo onde os filhos poderiam estudar e também devido algumas crises políticas envolvendo seu marido. Muda-se para o Brás e Cantídio para Salto Grande, uma cidade em expansão, mas que não abrigaria as expectativas de educação para os filhos. Cada um em uma cidade segue a vida.
Cora escreve para o Jornal “O Estado de São Paulo”, para Jaboticabal e continua guardando os versos na gaveta. Em 1934 falece seu marido. A dor é grande, mas segue em frente, voltando para São Paulo e abrindo uma pequena pensão, exercício que a deixou exausta de tanto trabalhar. Muda-se para Pinheiros e vende a pensão. Dedica-se a escrever artigos para o jornal e passa a fazer parte da associação de amigos da cidade. Entre suas amizades está a família de José Olimpio e dali passa a ter um novo emprego: o de vendedora. Cora se anima, adora ler e a cada livro que divulga, já o leu. Conhece toda a sua região e seus moradores.
A filha Jacinta descobre a cidade de Penápolis e ali Cora resolve ir morar , acompanhando a filha..
• Quero levar minhas sementinhas –disse a caçula. (Tahan 1989, p.168)
Com as sementes Cora arruma latinhas com o lixeiro e começa a plantar mudas. Morando atrás da igreja dos capuchinhos de São Francisco de Assis, Cora freqüenta a missa diária. Com suas mudas passa a vender para a prefeitura local, para a de Araçatuba com seu projeto de arborizar e embelezar cidades. Faz refeições para fora e, por fim, encomenda retalhos em São Paulo, abrindo A Casa de Retalhos. É líder e procura criar a Associação dos Comerciantes, filia-se à Ordem Terceira de São Francisco.
Mas Cora tem asas e ao conversar com amigos em Jaboticabal, descobre em Andradina uma nova possibilidade e ali se muda para ter a loja, Casa da Borboleta, e todos a conhecem porque manda pintar uma borboleta toda colorida e grande para todos verem sua loja. Depois compra um sítio em Alfredo Castilho, aonde vai permanecer por 16 anos. Contrata homens rústicos para desbravarem a mata: a maioria é do Nordeste, atraídos pelas terras paulistas.
Com a visita do deputado J.J. Abdalla em campanha eleitoral, Cora se pronuncia:
“Senhor Deputado, suas palavras demonstram preocupações e interesse por nossos problemas. Bem sabe o senhor, homem também da lavoura o que sofremos neste momento. (…) Onde já se viu um país essencialmente agrícola não ter a mais elementar das ferramentas que um homem da terra precisa? Se o senhor realmente quer saber o que fazer por esta cidade, por esta região, aí está: ajude-nos a encontrar enxadas”.
Mais tarde, as enxadas prometidas chegam à cidade. Após este evento, Cora sempre é convidada para participar de comemorações como Oradora.
Com muito trabalho Cora obtém uma ótima safra de milho. Seu trabalho junto aqueles homens inclui comerem todos a mesma mesa e tratá-los com muito respeito.
Escreve o belíssimo poema ao milho que abaixo citaremos alguns trechos extraídos do livro “ Poemas e Becos de Goiás”
Em qualquer parte da Terra
Um homem estará sempre plantando
Recriando a vida
Recomeçando o mundo.
(…)
Evém a perseguição
O bichinho anônimo que espia pressente.
A formiga cortadeira –
(…)
E o milho realiza o milagre genético de nascer.
Germina. Vence os inimigos. Aponta aos milhares.
-Seis grãos na cova
Quatro na regra, dois de quebra.
Um canudinho enrolado.
Amarelo pálido, frágil, dourado, se levanta.
Cria sustância.
Passa a verde.
Liberta-se. Enraíza.
Abre folhas espaldeiradas.
Encorpa. Encana . Disciplina,
Com os poderes de Deus.
Jesus e São João
desceram de noite na roça
botaram bênção no milho.
E veio com eles
Uma chuva maneira, criadeira, fininha
Uma chuva velhinha de cabelos brancos abençoando a infância do milho.
O mato vem vindo junto
Sementeira.
(…)
Túnicas, sobretúnicas
Saias, sobre-saias.
Anáguas, camisas verdes…
Cabeleireiras soltas, lavadas, despenteadas.
O milharal e desfile de beleza vegetal.
(…)
Não andeis a respigar – diz o preceito bíblico.
O grão que cai é direito da terra.
A espiga –perdida pertence ás aves
Que tem seus ninhos e filhotes a cuidar.
Basta para ti, lavrador,
O monte alto e a tulha cheia.
Deixa a respiga para os que não plantam e não colhem.
O pobrezinho que passa.
Os bichos da terra e os pássaros do céu.
Pela primeira vez Cora pensa em publicar um livro. Seu sítio vai bem , suas colaborações ao jornais continuam e sua visão política amplia, sendo convidada para ser vereadora não sendo eleita. Sua filha mais nova passa a estudar em Araçatuba.
Com a lei de Usucapião, Cora precisa retornar a Goiás, caso contrário poderá perder a casa onde nasceu. Cora arruma emprego para todos os seus empregados antes de ir embora. Em 1957, sua volta é pura emoção Nesta época começa a construção de Brasília. Cora tudo faz para comprar a parte da casa de outros familiares e então começa a fazer doces. Sua fama de doceira alcança o turismo, e faz parte do itinerário cultural comprar doces de Cora. Muitas vezes, para ampliar suas finanças, oferece de troco um poema. Sua produção literária amplia como se o retorno para casa abrisse de vez a porteira de sua criatividade. Muitos a incentivam a publicar um livro. Cora ganha de presente uma máquina de escrever e resolve matricular-se em uma Escola de Datilografia – aos 70 anos de idade. Aos poucos vai organizando seus escritos.
Cora resolve procurar a Editora José Olimpio e dali sai, em 1965, “Poemas e Becos de Goiás”. A sua casa é um espaço de conversas literárias, políticas e venda de doces. Quando o livro é publicado Cora exulta, e sempre deixa exemplares para serem vendidos junto aos doces. Cora é convidada para a Academia Feminina de Letras de Goiás. Seu segundo livro “Meu livro de Cordel” é editado pela Editora Goiana de Paulo Araújo. Sua casa cada vez mais é visitada, principalmente por jovens estudantes que querem aprender com seu exemplo vivo. Não dá autógrafo, escreve mensagens especiais a cada um que a procura.
Muitos se emocionam ao ver aquela figura recitar seus doces versos. Cora escreve para os netos “Os meninos verdes”, seu primeiro conto infantil.
Continua fazendo doces e um dia, em 1978, escorrega no porão cheio de lodo ao lavar uma bacia de laranja da terra. A fratura do fêmur. Precisa ser levada à Goiana.
( No meu olhar uma das passagens mais bonitas de sua vida, como conta sua filha:)
“ Os vizinhos sabendo de seu amor pelas plantas, antes dela seguir, dão-lhe flores e ramos. (…) Ela resolve levar tudo para enfeitar o quarto do hospital. O médico aguarda-a E qual não é seu espanto, ao abrir a porta da ambulância, ver dona Cora toda cercada de flores!
– Mas se está morta, por que trouxeram para cá?
• Calma, doutor, ainda não morri. Só estou chegando enfeitada. – humoriza Cora de sua maca.(Tahan 1989, p.219)
Daí por diante necessitará andar de muletas e reage ao descanso bravamente, iniciando seu aprendizado. Escreve um poema às muletas:
Ode às muletas
“(…)
Muletas utilíssimas
Pudesse a velha musa
Vos cantar melhor!
Eu as venero em humilde gratidão
Leves e verticais. Jamais sofisticadas
Seguras nos seus calços
De borracha escura
Nenhum enfeite ou sortilégio
Fidelíssimas na sua magnânima
Utilidade de ajudar a novos passos
Um dia as porei de parte
Reverente e agradecida.
Seja de uma grande benção
Aquele que as criou
Em hora sagrada inspiração do alto.”
Cora, após o acidente, vive exclusivamente dos livros, não mais fazendo doces. Sua casa é finalmente comprada e a parte dos sobrinhos é paga. Cora abate-se neste processo que acontece por meio de leilão, mas seu ânimo é logo recobrado. Em muitos domingos , comparece à feira hippie da praça onde autografa seus livros
O poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1979, torna-se um grande admirador de seu trabalho, escrevendo-lhes cartas e publicando artigos em vários jornais do Brasil:
“ …Admiro e amo você como a alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu lirismo tem a força e a delicadeza…”
Graças a ele Cora vai se tornando conhecida em todo país passando a ser convidada para palestras e encontros.
Quando recebeu a homenagem Idosa do Ano pelo SESC:
“Sou uma ave rara da minha geração. Minha fortaleza de ânimo vem de nunca ter me abatido mediante as vicissitudes da vida.”
Aninha e suas Pedras
Não te deixes destruir
Ajuntando novas pedras
E construindo novos poemas
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta
Roseiras e faz doces.
Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens
E na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte
Vem a estas páginas
E não entraves seu uso
Aos que tem sede.
(Outubro, 1981)
Com grande dificuldade, termina o livro “Vintém de Cobre” e já está com 90 anos de idade. Sua cidade faz uma grande festa comunitária para festejar a data.
“Não é o poeta que cria poesia e sim, a poesia que condiciona o poeta.”
Aos 94 anos recebe o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Goiás e declara ser a maior felicidade de sua vida. Muitos outros prêmios lhe são atribuídos, entre eles o prêmio Juca Pato, incentivado por Dalila Telles Veras de Santo André , tendo Cora sido a primeira mulher a recebê-lo e a mais votada entre todos em 22 anos de existência do prêmio. O programa Vox Populi da TV Cultura faz um programa de entrevista. Hebe Camargo a entrevista. A TV Globo exibe um caso verdade sobre Cora. A Paulistur presta-lhe uma homenagem inesquecível em São Paulo. Neste dia completou 95 anos de vida.
Cora foi, ainda, hóspede oficial de várias cidades.
O Senado Federal por proposta de Henrique Santillo, presta-lhe homenagem em Brasília.
Cora está muito enfraquecida ao voltar para a Casa Velha da Ponte. Em 10 de abril de 1985 deixa-nos Cora Coralina.
Deixou 15 netos e 19 bisnetos.
Recebeu, pós morten, inúmeras homenagens, troféus, diplomas, prêmios, certificados, medalhas, placas, comendas, bibliotecas, nomes de ruas e escolas.
Conclusão
Após sua morte, amigos e parentes uniram-se para criar a Casa de Coralina, situada às margens do Rio Vermelho, que mantém um museu com objetos da escritora.
A casa Velha da Ponte – como Cora denominava poeticamente sua residência – possui valor histórico e arquitetônico por representar um testemunho pouco alterado da produção arquitetônica do século XVIII, correspondendo a uma das primeiras construções edificadas na antiga Vila Boa de Goiás, conforme atestam um mapa de 1782 e o testemunho da própria Cora Coralina. Em 1911 Cora deixou a Casa Velha da Ponte, retornando aos 67 anos de idade. Durante anos trabalhou como doceira conseguindo, depois de 22 anos, adquirir a casa aos diversos herdeiros. A dinâmica humana e social, de fundamental importância no trabalho de preservação do patrimônio cultural, neste caso se apresentam de forma evidente; os espaços da Velha Casa da Ponte estão impregnados da presença de Cora Coralina, os significados se entrelaçam.
“Casa Velha da Ponte…
velho documentário de passados tempos, vertente viva de histórias e lendas.”
“Barco centenário encalhado no Rio Vermelho”
“eu era menina e você já era a mesma”
“Minha Casa Velha da Ponte….
assim a conheci e canto com minhas pobres letras”.
(Ministério da Cultura. Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Fundação Nacional Pró-memória)
Em 1989, quando Cora faria 100 anos, foi lançado um selo comemorativo em sua homenagem. Nele consta o seguinte poema:
“… Eu nasci num berço de pedras
de pedras tem sido meu berço
de pedras têm sido os meus versos
no rolar e bater de tantas pedras.”
Em 1999, Luiza Lobo, Professora da Faculdade de Letras da UFRJ e Pesquisadora pelo CNPq, coordenando o Projeto Integrado Literatura e Cultura com duas revistas on line, assim considerou Cora Coralina: Como os poetas Manoel de Barros e Adélia Prado, que aproveitam temas populares em sua poesia, Cora Coralina alia o aspecto oral, regional e rural à tradição da poesia popular bárdica. (…) Tanto na espontaneidade da poesia, quanto na simplicidade temática de seus contos, guarda origens interioranas de Goiás, tão celebradas na televisão pelos cantadores boiadeiros.
“Versos…não,
poesia…não.
Um jeito diferente de contar velhas histórias”
Em 2001, segundo o site www.navedapalavra.com.br, “foram encontrados escritos inéditos. O material encontrado pela família será transformado em livro. Além dos poemas, foram encontrados cadernos com contos, cartas e uma pasta com manuscritos que não puderam ser aproveitados. Há cartas que não foram enviadas, textos comentando artigos de jornais e outros de forte cunho social. Também planeja-se elaborar um Cd Rom.”
Sua sabedoria transmitida numa linguagem simples e acessível, educava e inspirava a todos que a conheciam.
Suas palavras tornaram-se eternas em nossos corações:
“ Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”.
“Tudo dentro de mim caminha para frente.”
Este livro (trecho retirado do livro Poemas e Becos de Goiás)
… Que o saiba sempre em brochura, ao alcance das crianças, jovens e adultos, que mãos operárias repassem estas páginas e sintam-se presentes, juntos à mulher operária que a elaborou. Que possa atravessar as cidades e alcançar a alma sertaneja, levando minha presença terra aos enxadeiros e boiadeiros que tanto me ensinaram.(…)
Possa valer seu conteúdo, sempre encontrado em bancas populares e em balcões de livrarias – seu preço ao alcance de um leitor modesto.(…) Lido, relido, rabiscado(…)
Que possa sobreviver à autora e ter a glória de ser lido por gerações que hão de vir de gerações que vão nascer.
Epitáfio
(placa deixada pronta para seu túmulo)
Morte serei árvore
Serei tronco, serei fonte
E minhas raízes enlaçadas às pedras de meu berço
Sou as cordas quebradas de uma lira
Enfeitai das folhas verdes a pedra do meu túmulo
Num simbolismo vegetal
Não morre aquele
Que deixou na terra
A melodia de seu cântico
Na música de seus versos.
Foram seus livros póstumos:
Meninos verdes (1986)
O tesouro da casa Velha da Ponte (1989)
A Moeda de ouro que um pato engoliu (1997)
Com seu estilo único e pessoal Cora Coralina poetizou os sertões de Goiás, seus costumes e sua gente.
Cora é o próprio coração no coração de Goiás
Final
Soneto
Um olhar para Cora Coralina
Menina Faceira
Alma doce da doceira
Obscura? Não. Seresteira
Clareira…
Receita de palavras – feiticeira
Olhos escuros. Frutos das jaboticabeiras…
Poetisa das roseiras
Velha Vanguardeira.
Pra que de ti falar
Se sempre quis iluminar
Curando nossa cegueira
Libertar-nos do próprio algoz
Plantando campos juvenis em nós
Como eterna sementeira.
Uma nova história escrita: juntos!
Por Silmara Rascalha Casadei
Moça, compra bala?
– Não tenho dinheiro agora! (respondo, fechando logo o vidro do carro).
– Ah! Compra vai! Já é noite e eu estou tão cansada.”
Quando passamos em uma rua qualquer, é muito comum presenciarmos cenas como essas ou, ainda, visualizarmos crianças junto a familiares dormindo em tendas cobertas por plásticos ou mesmos sozinhas em bancos de praças com suas blusinhas surradas em plena garoa fina. Lembro-me uma vez que, após um menino limpar os vidros do meu carro com o tradicional rodinho, (mesmo com minha negativa!) resolvi pagar-lhe com algumas moedas. A manhã estava fria e, ao entregar- lhe a pequena quantia, toquei as mãos do menino e senti o quanto estavam geladas…
Assim são as expressões de muitos filhos dessa geração: vendedores de balas, de amendoim, limpadores de pára-brisas, malabaristas…Crianças que estão do lado de fora de nossos vidros pedindo ajuda e, muitas vezes, ameaçando ou agredindo. Estão sem meios de sobrevivência, sem encaminhamentos à escola e à educação.
Impossível não olhar para toda essa exclusão e não pensar no motivo de tanto abandono. Impossível não observar que não há brilho nos olhos, nem gritinhos de alegria e que o amor está encarcerado. E nós? Afinal somos gente! Somos educadores!
Do outro lado dos vidros, em nossas casas, nos nossos trabalhos e em nossos relacionamentos percebemos o quanto estamos carentes. Sufocados pelo medo da violência, pelo descaso e pela indiferença calamos nossa cantoria e nossa expressão amorosa.
Dentro de um mesmo problema corações pulsam com a necessidade de amar e de serem amados. Impressiona, ofende, assusta, machuca e maltrata a forma com que a humanidade tem se abandonado.
Abandonamo-nos quando nossas tendências apontam para o isolamento.
Abandonamo-nos quando perdemos a fidelidade para conosco mesmo, não realizando o nosso melhor, não o melhor que o outro para ocupar o seu lugar, mas o melhor de todos os nossos eus, para expansão de nossas possibilidades tal como árvores frondosas.
Abandonamo-nos quando deixamos de sorrir claro, de ter prazer de amar o amor, de deixar fluir e construir a livre expansão do bem.
Abandonamo-nos quando deixamos que o marasmo, o “deixe para amanhã”, o “dê um jeitinho”, façam de nossas vidas um acúmulo de pensamentos egoístas a respeito do que “eu vou querer” e um nada de sentimentos pelo simples prazer de ser.
Abandonamo-nos quando jogamos no chão nossos sonhos mais bonitos, permitimos que roubem nosso dinamismo, nossa vontade de seguir em frente, nossa paz. Essa é a maior perda que pode haver: a perda do poder sobre nós mesmos. A perda do poder do amor.
Homens e mulheres estão como que mutilados, concebendo menores abandonados, filhos de uma imensa geração que abandonou o bater no peito, olhar altivo e com respeito, o caminhar firme e direito nesta verde mata-chão. Nossas mãos esquecidas deixam outras desempregadas e caídas e nada constroem para essa dinastia tenha uma pátria feliz.
Sim, somos gente! De um lado ou do outro, nas ruas ou com os vidros fechados, estamos aqui com nossos maiores abandonos e com os menores abandonados. De um lado ou de outro estamos nos esperando e de algum modo precisamos nos encontrar e buscar soluções. Vamos abrir nossas intencionalidades para oferecer ao outro o que temos de melhor. Vamos abrir nossos vidros de artificialidades para que as janelas de nossas expressões sinceras observem e atuem de modo cooperativo e inteligente.
Dialogarmos, refletirmos, destacarmos o que é possível, o que funciona, trocamos ideias, planejarmos, agirmos e começarmos a vivenciar uma verdadeira cultura: a cultura da educação que promove a paz. A cultura do aprender a conhecer, aprender a conviver, aprender a fazer e aprender a ser.
Precisamos mais, precisamos preencher nossas crianças e jovens de recursos humanos e materiais para que no futuro recusem situações que os coloquem em risco tais como o consumo de drogas, violência, doenças, gravidez na adolescência, desinteresse pelo estudo, isolamento contínuo, falta de compreensão e solidariedade
Oferecer-lhes a beleza por reconhecerem-se como sujeitos históricos e com identidade própria. Aproximá-los do convívio cultural, dos grandes clássicos e das trocas de experiências significativas. Vamos abrir verdadeiramente, a porta de nossa sala de aula que passa invariavelmente pela porta do nosso coração.
Vamos acordar e despertar deste grande sono, transformando em realidade o que é utopia, acertando nossos diferentes acordes em harmonia.
Vamos trocar a violência e a ignorância por manifestações de cultura e escolarização. Vamos nós também, educadores, estudar mais, ler mais, pesquisar mais para que as propostas sejam assertivas e para que sejamos nós o exemplo vivo do ensino, do aprendizado e do bem
Vamos colocar jardineiras floridas em nossas janelas.
Vamos escrever novas histórias.
Milhares delas com melhores finais!
Juntos.