Crônica da Fauna Doméstica

Celso de Almeida Cini

Celso de Almeida Cini

Sabe, leitor amigo, foi numa manhã, início do inverno, em fins de junho de 2013. Estávamos na cozinha da casa do amigo Moisés, no Bairro Jardim de Santo André, aguardando o preparo de um cafezinho na “muca” italiana, após nossa aula de ginástica da terceira idade, no Parque Celso Daniel. Era mais uma visita cordial e de solidariedade ao amigo antigo, de 1954,  agora viúvo.

Naquela hora, meu amigo já havia preparado e posto comida para os pássaros, como o faz diaria e habitualmente, no fundo do quintal, valendo-se dos galhos de um velho pé de limão rosa. Limoeiro senil, como nós; raras folhas, muitos galhos, poucos espinhos e muitas pontas para espetar e oferecer a comida à fauna ornitológica doméstica: num gancho espetava uma banana-maçã semi descascada; outro galho suportava um abastado cochinho com sementes de girassol; lá no alto uma tentadora fatia de mamão de Monte Alto e duas metades de laranja baiana, oferecidas numa bandeja improvisada, equlibrada em dois galhos e água adoçada com mel, em garrafinhas suspensas como pingentes, quase brincos, gigantes e atraentes. Um banquete da hora, mesmo. Já pensou?

O tempo não estava ajudando: nublado escuro e peneirando pingos tristonhos. Estávamos ambos algo depressivos, afligidos por problemas pessoais, agravados por nossa velhice. Ele perdera a esposa há menos de um mês. Minha visita era de solidariedade, por uma amizade muito antiga. Falamos de nossa juventude nos anos 50, no século passado… Mas, para os pássaros, jovens e dispostos, comida é comida, e habitualmente os comensais não faltam à festa diária. Afinal, era boca livre para um bando de bípedes plumados canoros. Nada de tristezas: isso só era lícito a amigos idosos e limoeiros velhos, como o tempo antigo, que não volta jamais…

Alguns dos pássaros frequentadores do seu fundo de quintal, como os sabiás, o joão-de-barro e outros, ainda ciscavam,  correndo “calcante pede” (a pé), pelo chão, em busca de iguarias do minhocário… que Moisés havia feito e sustentava, também.

A cafeteira chiava e já exalava aquele forte e agradável aroma da rubiácia madura, torrada e moída, ao receber o jato d’água  fervendo, enquanto eu apanhava adoçante e as chícaras prediletas. Foi quando ouvi o agudo som de um flautim a suspirar notinhas curtas com aquele assobio distinto e carinhoso: o garboso sanhaço verde-azulado já buscava avidamente o lado descascado da banana, dependurada no galho. O pássaro, encantado pela fartura, fazia acrobacias para alcançar aquele filamento grosso cheiroso, macio e muito doce.

E, é claro, não dá para falar e muito menos cantar enquanto se come. Logo, nada de cantos longos: Comer, comer… comer, comer para poder crescer!

De repente, como soe acontecer, o tempo melhorou e uma réstea de sol, coada por uma fresta azul do céu, veio brindar a festa e seus participantes, quando um bem-te-vi atrevido anunciou-se solerte: “te vi…te vi!” A ave apenas olhou para o mamão, mas observava mais demoradamente uma saíra-duas-cores, miúda a sugar o líquido adocicado com mel, de uma garrafinha brilhante e chamativa, ali dependurada. Um beija-flor de um verde multifacetado e cambiante acabara de fazer sua terceira sucção na outra botijinha de água-doce.

O amigo Moisés, afeito às lides domésticas, tratou de desligar a chama azul que aquecia a cafeteira, enquanto comentava o festival dos visitantes alados e apontava, um por um, os visitantes do limoeiro. Conhecia-os todos! Não há falar de tempo ruim. O sol ia e vinha, mas a fome voejante continuava viva e urgia cuidar dela.

Todos iam voando e bicando calmamente os manjares, até que três arrulhantes maitacas – espécie de periquito barulhento -decidiram invadir ao mesmo tempo o cochinho das sementes de girassol. Foi uma agitação verde com sementes espalhadas, em vôo, e muito grasnido, daquelas mini-galinhas verdinhas, chiacherando à moda italiana. Mais duas maitacas sobrevoaram o cochinho e vieram juntar-se às primeiras; já tinhamos, então, uma verdadeira assembléia delas, tão ruidosa, quanto o alarido de um condomínio em reunião. Aos poucos, as beligerantes aves esmeraldinas se entenderam e, numa sábia e inacreditável cooperação corporativa, mantiveram-se a alimentar-se das sementes com disciplina, enquanto o sanhaço solitário fartava-se da massa fresca da banana-maçã. E o bem-te-vi atacou aquele delicioso mamão carnudo lá no alto dos galhos do velho limoeiro, mui atencioso, qual garçon consciente de seu ofício de bem servir.

E nós, bípedes implumes e sociais por excelência, saboreando uma bela chícara de café expresso cremoso, fumegante, de aroma capitoso e inebriante, apreciávamos o agito da passarada e ouvíamos os primeiros trinados do sanhaço agradecido.  Afinal, polinizara flores por aí a fora e, a seu modo, se sentia merecedor daquela recompensa. Moisés insistia que eles comparecem todos os dias, religiosamente, para o café da manhã, faça ou não tempo bom. Só um temporal tropical os poderia assustar e afastá-los daquela adorável “mesa supensa”.

O vetusto limoeiro nunca reclama. Sente-se lisonjeado em poder servir à corte das criaturinhas aladas, aqueles ruidosos comensais.

Cansado de sua intensa vida produtiva, agora vivia sua encolhida “retraite”, como aposentado; seus galhos retorcidos não  frutificam mais os avermelhados limões de cheiro, como dantes, nos verdes anos de sua fecunda juventude, que há muito se fora e jamais retornará… Mas, estava feliz em servir, prestativo, como mesa de pasto às aves canoras e famintas.

Há comida para todos. Mas, os comensais desavisados, costumam defender-se de sócios inoportunos. A saíra comum, miúda monopolizou sua garrafinha melíflua com muita sede quase a dizer: tudo meu! Tudo meu! Outro beija-flor menor, mas esperto, agarrara-se ao frasco, bico longo e curvo, no bocal do líquido melado: pequenino mas sedento, glut, glut! E zás, voa de ré e pousa um pouco acima, num observatório seguro e muito conveniente.

Vez ou outra as briguinhas das rolinhas fogo-pagô as fazem fugir bruscamente dali, e barafustar involuntariamente para dentro da cozinha, pelas frestas nos vidros. Deste ambiente, só conseguem retornar à mesa suspensa com a ajuda do anfitrião que, pacientemente, lhes providencia a necessária abertura para que as aves cessem as  inúteis bicadas no vidro que as aprisiona e se livrem. Uma vez libertas, as rolinhas também se atiram ao saboroso mamão vermelho, lá no alto, enquanto enfrentam o bem-te-vi insatisfeito com as sócias concorrentes. Tamanho não é documento e guerra e guerra, ora essa!

O gato da vizinha, de linda pelagem castanha com manchas brancas, dorso suspenso sobre o muro divisório, tudo observa, olhos fixos no limoeiro. Ardiloso e sorrateiro, ao ver e ouvir aquele alarido promissor de tantos apetitosos almoços de plumados esvoaçantes, põe-se, sequioso, em posição de caça. Por cautela, o anfitrião atento, dá um jeito de remover o iminente perigo felino,  frustrando-lhe o astuto plano de atacar o passaredo ruidoso do limoeiro restaurador. Surpreendido por uma vassoura inimiga, o esperto gatuno felino recua e salta assustado para o interior de seu território.

Ele terá sua parte no ágape, mais tarde, com sobras do almoço e iscas de peixe, como consolo de sua frustração. O anfitrião não o deserda totalmente. Apenas evita o avanço da criminosa astúcia e posterga o seu atendimento: prioridades, ora essa!

E a voragem geral dos pássaros prossegue, enquanto pardais intrusos tentam depredar tudo, querendo sua parte no banquete. A nobreza voejante alheia ao perigo que corre, vai satisfazendo seu apetite, com aparente indifereça à agitação que a rodeia. É que, na verdade, todos são, nessa hora, um olho na comida e outro nos riscos  que os rondam…

E eis que o sabiá-peito-de-cobre, deixa o chão por onde deambulava às minhocas e sobe, inquieto, graúdo e gracioso, para cobrar sua parte matinal. Junto à mesa suspensa, descobre muito alegre as duas metades de laranja, plenas do delicioso sumo farto, de cor ensolarada, temporariamente livres de interessados. Às vezes são mesmo chamados de sabiá-laranjeira. E o sanhaço retorna à sua preferida banana-maçã, com mágicas manobras acrobáticas para bicar sempre aquele delicioso manjar potássico.

Dentre essa passarada urbana doméstica não se vêem tucanos, saíras-sete-cores dos jardins do Parque das Águas, de São Lourenço de Minas, nem o rutilante vermelho-cochinilha do sanhaço-de-fogo ou piranga flava, muito vistos na mineira Arceburgo. Tampouco estão presentes os avinhados, os curiós cantores, coleirinhos e tizius, ou as corruílas-do-brejo, nem mesmo as conhecidas pombas urbanas que encantaram e inspiraram o poeta Raimundo Corrreia. Nem estão presentes as miríades de periquitos e os socós solitários, nem o beija-flor-arirambo, de túnica verde-dourada e pescoço branco, e muito menos o raro Uirapuru, sagrado pássaro marrom-chocolate, dono do canto-rei da Amazônia, porque são espécies que talvez não se interessem por essa espécie de restaurante doméstico. Frequentam árvores mais altas, florestas densas, muito distantes dos centros urbanos. Alguns deles apresentam-se no Parque próximo, onde sempre encontram variados insetos, muitas sementes, pequeninas vespas e frutinhas selvagens de que se alimentam.

Na verdade, falamos de uma fauna ornitológica maior do que as que frequentam o velho limoeiro, mas também doméstica e está adiante, no arvoredo robusto do Parque Celso Daniel, em busca de sementes selvagens, insetos voadores e não desprezam as migalhas atiradas por frequentadores domingueiros do Parque. Quanto às pombas, principalmente, estes últimos anfitriões, contrariamente às ordens, as alimentam, ao lado da fauna lacustre dos peixes, tartarugas, socós solitários e mergulhões que frequentam o lago das carpas coloridas, alvoroçando suas águas tranquilas logo que chega alguém conhecido com saquinhos de guloseimas destinadas a essa outra fauna, também insaciável, acostumada às benesses, pois é inverno e a seca nega, até a primavera, amoras,  pitangas, figuinhos selvagens e outros pitéus. As flores também são raras.

Assim, lá, como cá, chega sempre a hora da comilança. E as pombas ávidas, se antecipam escandalosamente aos demais pequenos comensais, peixes, cágados, pássaros e bichinhos menores, próximos ao lago, que não conseguem acompanhar a voracidade e a velocidade das pombas devoradoras. E elas, uma vestida de branco-sépia, aquelas três, cinzentas, uma pedrez, duas de pescoço furta-cor verde-azulado, uma revoada delas de túnicas branco-alvas, todas, esvoaçam em torno do alimentador eventual… até pousam ousadas e destemidas em seus ombros e mãos. Este, aturdido, as afasta buscando premiar primeiro os menos favorecidos pela sorte, em razão de sua lentidão na chegada. Uma tartaruga retardatária se aproxima, terminando de mastigar uma pequena flor encontrada à beira do regato que alimenta o lago. Ela tem senha preferencial… e, pela idade, o alimentador a atende solícito… antes das pombas… Depois, os peixes e, finalmente, é o dilúvio do alvoroço pombalino e, salve-se quem puder!!

De volta ao nosso limoeiro restaurador da fauna doméstica, um novo beija-flor, de bico curvo, se rende ao apelo daquela visão, colorida e brilhante, e busca primeiro o adoçado aperitivo de que se servem outras saíras pequeninas e sagazes. Preocupadas com sua segurança, sugam o néctar e afastam-se rápidas para evitar o atropelo das aves maiores. O sanhaço, graúdo e desajeitado, também encontra um modo de bebericar o líquido melífluo, irresistível. E, surpresa, um bélissimo canário da terra, peito amarelo-avermelhado surge identificando-se por seu canto mavioso e arremetendo com arte para participar da maravilhosa festa frugífera, junto às laranjas.

Quase duas horas de vigorosa presença dos bípedes plumados  àquela mesa farta, suspensa no generoso limoeiro rosa, e a saciedade veio chegando, afastando-se dali, inicialmente, os menores, já bem abastecidos e alimentados. Pudera! comem como passarinhos…! Então os cantos de cada um dos comensais se fazem ouvir, alegres e continuamente voejantes sobre o limoeiro, como despedida. Voltarão mais tarde, se  e quando houver apetite…

Meu amigo conta, satisfeito, que a passarada que protege é sua amiga, interesseira é verdade, mas que alguns dos plumados aparecem e pousam em sua mão, quando oferecida, embora de olho desconfiado na retaguarda que lhes permitirá uma fuga rápida, se necessária.

E, então, com aquela imagem e o alarido sonoro na mente, desanuviaram-se-me do pensamento as tristezas que me afligiam, quando acabo de experimentar, após o delicioso café expresso, um mágico Xerez de La Frontera, amontilado. Somos dois caras afortunados, eu e meu amigo Moisés, desde nossa longínqua juventude, dos anos 1954, quando tínhamos vinte anos. (“J´avais vingt ans”!). Éramos tão felizes e não sabíamos. Mas, agora,  tardiamente, mas ainda em tempo, sabemos disso e louvamos a Deus, por tudo quanto fizemos!

(*) Celso de Almeida Cini é advogado, professor, escritor, memorialista e membro da Academia de Letras da Grande São Paulo, ocupando a Cadeira 37, cujo Patrono é Afonso Schmidt

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