Gonçalo Silva Júnior

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Gonçalo Silva Júnior

Patrono: José Lins do Rego
Cadeira 21


 BIOGRAFIA

  • É jornalista, escritor e pesquisador nas áreas de cinema, imprensa, música e artes gráficas. Nasceu em Guanambi (BA), em 1967, e se mudou com a família ainda menino para Salvador (BA), onde estudou Jornalismo (Universidade Federal da Bahia, 1993) e Direito (Universidade Católica do Salvador, 1997). Em outubro de 1997, mudou-se para São Paulo, onde reside até hoje.Como jornalista, trabalhou nos jornais Jornal da Bahia, Tribuna da Bahia, Bahia Hoje, Gazeta Mercantil e Diário de S. Paulo. Colaborou em importantes publicações brasileiras, como Playboy, Folha de S. Paulo, Bravo!, Entrelivros, Almanaque Abril, Trip, Revista Voe Gol, Mais!, MAG, Dufry, RG, Lola, Imprensa, A Tarde, Revista Izzo, Private Brokers, Revista Shopping Cidade Jardim, Jornal da Associação Brasileira de Imprensa, etc.Entre 2007 e 2010, editou desde o primeiro número a revista de cultura trimestral Personnalité, para clientes do Banco Itaú – foi o responsável pelos 13 primeiros números. Trabalhou como coordenador de imprensa no Memorial da América Latina entre 2012 e 2013, onde criou o guia de programação mensal e a TV Memorial, além de organizar uma série de eventos e exposições. Foi editor da revista Brasileiros entre 2013 e 2014.

    Como escritor, ganhou quatro vezes o Troféu HQ Mix, o mais importante na área das artes gráficas.


BIBLIOGRAFIA

País da TV, Conrad Editora, 2001.
50 Anos de Tex no Brasil, Opera Graphica, 2003.
51 Tatuagem de Cadeia, Editora Escala 2003.
Medicina para leigos, Editora Garçoni, 2004. (Não comercializado)
lceu Penna e as Garotas do Brasil, CLUQ, 2004.
A Guerra dos Gibis – a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1933-1964, Editora Companhia das Letras, 2004.
Tentação à Italiana, Opera Graphica Editora, 2005.
O Homem-Abril, Opera Graphica, 2005.
Benício – Um perfil do mestre das pin-ups e dos cartazes de cinema, CLUQ, 2006.
A Biblioteca dos Quadrinhos, Opera Graphica, 2006.
O Incrível Homem que Encolheu (infantil), Manole, 2008.
Enciclopédia dos Monstros, Ediouro, 2008.
Vida Traçada, um perfil de Flavio Colin, Marca de Fantasia, 2009.
O Mocinho do Brasil, Laços Editora, 2009.
O Beijo nos Quadrinhos, Centopéia, 2010.
Maria Erótica e O Clamor do sexo, Peixe Grande, 2010.
Alceu Penna, Manole, 2010.
Ora, Bolas, Alameda, 2011.
A Morte do Grilo, Peixe Grande, 2012.
E Benício criou a mulher, Opera Graphica, 2012.
Quem Samba Tem Alegria, Civilização Brasileira, 2014.
Versão Brasileira: Herbert Richers, Criativo Editora, 2014.
É Uma Pena não Viver, Editora Planeta, 2015.
Belmonte, Publifolha, 2015.
O inventor do fanzine: um perfil de Edson Rontani, Marca de Fantasia, 2015.
É uma pena não viver – Uma biografia de Rubem Alves, Planeta, 2015
Milo Manara – Subversão pelo prazer, Editora Noir, 2017.
Eu Não Sou Lixo – A trágica trajetória do cantor Evaldo Braga, Editora Noir, 2017.
Pra que Mentir? – Vadico, Noel Rosa e Samba, Editora Noir, 2017.
José Luis Salinas – Visionário dos Quadrinhos, Editora Noir, 2017.
O Deus da Sacanagem – A Vida e o Tempo de Carlos Zéfiro, Editora Noir, 2018
Famigerado! — A História de Luz Vermelha, o bandido que aterrorizou São Paulo, Editora Noir, 2019
Claustrofobia, (com Júlio Shimamoto), Devir, 2004.
O Messias (graphic novel, com Flávio Luiz), Opera Graphica, 2006.
Natureza Humana (com Nestablo Ramos), HQM, 2012.
A Noiva Zumbi, (com Fábio Cruz) Opera Graphica, 2014.
Até Que a Morte Nos Separe, (com Júlio Shimamoto), Editora Noir, 2017.

Livro Organizado:
Dom Quixote – Gustave Doré/Miguel de Cervantes, Opera Graphica, 2005;

Livros coletivos:
Glória in (TV) Excelsior, organizado por Álvaro de Moya, Imprensa Oficial, 2004.
Menino de Engenho, 40 anos Depois, organizado por Lúcio Villar e Antônio Vicente Filho, Editora UFPB, 2004.
Um Mundo de Impressões: 60 Anos da Editora Globo, co-escrito com Thiago Blumenthal, Editora Globo, 2012 (não comercializado, brinde da editora).


Pronunciamento de apresentação de Gonçalo Silva Júnior na Academia de Letras da Grande São Paulo, proferida pelo Acadêmico José Roberto Espíndola Xavier.

É sempre uma grande alegria receber amantes das letras, defensores da liberdade de expressão da vilipendiada arte da comunicação, na era dos contatos virtuais instantâneos, modo que empodera, para o bem e para o mal, genialidades esconsas e imbecilidades incontidas explícitas.

Bem-vindos sejam artesãos de prosas e rimas, arautos que anunciam dramas cotidianos, capilarizando ideias e ideais, armas legítimas da democracia, hoje perdidas no cipoal das mentiras e das traições, ante a deturpação da literacia digital que desorienta nossa juventude.

De hoje em diante, caros Sérgio e Gonçalo, este sodalício lhes oferece um novo espaço, o qual, no desenvolvimento dos seus talentos, poderão decorar segundo seus gostos de ser e de estar, para combater a sua maneira a mediocridade cultural que assola o país.

Aqui é possível pincelar as cores das suas bandeiras em pensamentos e tendências que reflitam suas escolhas, moldados por escalas de valores intrínsecos, revelando marcas individuais autênticas e reafirmando indeléveis e inalienáveis truísmos que compõem seus patrimônios éticos.

Habitem-no com a grandeza inefável dos espíritos libertários, inspiradores dos nossos melhores momentos de lucidez e autorrealização, insights para a edificação de si próprios e para a preservação dos frágeis princípios do nosso jovem estado democrático.

Aqui, poderão expressar, com a autenticidade dos justos, suas aptidões, contando com o incentivo de um meio que comunga os mesmos pendores, os mesmos misteres, a mesma inquietude que transborda em dores, alegrias e amores, o cultivo da palavra escrita. Revolvam esta terra fértil. Plantem. Os frutos serão sadios e as flores viçosas.

“Verba volante, scripta manent”
Ornamentem este silogeu com adereços das paixões vivenciadas e façam dele o endereço das suas mais convictas performances, seja suscitando indignações, suportando anátemas, ou mesmo revivendo sonhos pueris, mas usando sempre o que houver de mais persuasivo na sua dialética.

“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”( F. Pessoa).
E se a alma é grande, mantém-se vivo o entusiasmo para criar, mesmo quando um ilusionismo retrógrado se apresentar travestido de iluminismo; mesmo quando a frouxidão das leis – o laxismo conveniente e conivente – facilitar os meandros da corrupção e turvar os limites de poder das instituições, ameaçando seu equilíbrio e governabilidade.

É dos cérebros privilegiados que a nação espera o protagonismo na luta contra a ética medieval, a truculência, a estultice, o desrespeito às diversidades, o fundamentalismo religioso de um Estado teocrático e o obscurantismo das posições extremadas por retóricas populistas.

Assim seja em nome da secularidade, do Estado laico.

Não negligenciemos o combate ao vergonhoso débito humanitário que temos com os desvalidos desta injusta nação, última a extinguir a escravidão.

Abro aspas para Buda:

“O conflito não é entre o bem e o mal, mas entre o conhecimento e a ignorância”.

No início dos anos oitenta até os primeiros anos deste século XXI surgiram as gerações millenium (Y) e geração centenium (Z), que vêm transformando a humanidade com novas concepções de relacionamentos, padrões de consumo, condições de trabalho, formas de emprego, habilidades inusitadas e questionamentos da contracultura.
A evolução tecnológica, a avassaladora oferta de informações e a incrível velocidade da comunicação coloca estes jovens em um novo mundo, inconcebível na minha geração X, de após segunda guerra mundial. Estabelece-se outra grande responsabilidade para formadores de opinião nesta nova era, que é como enfrentar a ditadura digital com seu domínio de dados e doutrinação de mentes.

“Ó tempora, ó mores!”

Quais deverão ser os caminhos da Educação? Como harmonizar os diferentes costumes e construir uma convergência de interesses? Conseguiremos nos comunicar? Como devemos nos posicionar com relação às minorias? Haverá tempo ou sensibilidade para o “Pro Bono et Bello”, lema desta Academia?

Enfim, está surgindo outro “Admirável Mundo Novo”, livro de ficção de Aldous Huxley, escrito em 1932, sobre o como seria Londres no ano de 2050, tornando-o bastante atual no que diz respeito às potencialidades autoritárias de um governo de castas manipuladas (até geneticamente) e adestradas para servir ou cumprir destinos monitorados.

O avanço da Inteligência Artificial, descrita por Yuval Harari, escritor israelense, substituindo paulatinamente a inteligência humana, elucidando e ditando comportamentos, coloca os organismos como um conjunto de algoritmos bioquímicos a serem decifrados, e a vida apenas como um processamento de dados.

Seria o fim do romantismo? Onde ficam os sentimentos?

Estaria a inteligência se desacoplando da consciência?

Não acredito nisso, ainda. Por mais perfeita que seja uma máquina que “pensa”, não consigo conceber uma que “sinta”!

Não podemos aceitar uma nova “Geração Perdida” como descreveram Gertrud Stein e Ernst Hemingway, escritores americanos, sobre o comportamento da juventude no século passado, no período da primeira guerra mundial, e da grande depressão de 1929.

Entretanto, não nos esqueçamos da política pública mais fracassada do mundo ocidental, que é a da guerra contra as drogas, o que nos coloca atualmente em semelhante vulnerabilidade.

Condutas discricionárias nos governos levam a crises de autoridade, à perda de legitimidade das instituições e ao esquecimento de que o ser humano é a prioridade absoluta da criação divina e deve ser o objeto maior da nossa evolução física e espiritual.

Abro aspas para José Saramago, escritor português, Nobel de 1998:

“O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que for suscetível de servir aos nossos interesses”.
Incivilidades que burlam regras de coexistência e convivência. Tivesse Saramago nascido no Brasil, com certeza estaria descrevendo o “jeitinho brasileiro”.

Caros Sérgio e Gonçalo.

Exercer a arte de escrever carece de ebulição, de desassossego, de entusiasmo juvenil em qualquer idade; carece de destemor, de autenticidade, de voluntariedade; carece ver com olhos de enxergar, compreender com astúcia e sentir com o coração a realidade que nos envolve.
Os bons combates são travados à luz das virtudes.

No cotidiano, ao conjugarem verbos no passado, não o façam como lamentos, mas como uma louvação de aprendizado; ao declamá-los no presente, façam com a coragem dos que acreditam nos seus propósitos; ao decliná-los nos tempos futuros, seja para referendar a sua resiliência e a confiança que o saber lhes confere.

Psicólogos chamam isso de autoestima; os teólogos, de livre arbítrio.

Estarão, assim, preparados para iniciativas que realmente transformam, que podem ser humildes na forma mas devem ser profundas no conteúdo.

Venham.

Tragam suas experiências, suas verdades; mostrem a maneira como vocês entendem o mundo. Compreendemos o egoísmo racional, a ambição mensurada pela razão, o lado hedonista inerente a cada um de nós em busca da felicidade.

Eu lhes almejo muito sucesso e agradeço por valorizarem o capital humano desta Academia.

Nas suas trajetórias, se fustigados por ventos contrários, construam moinhos; com ventos favoráveis, inflem as velas e singrem o mar da vida rumo aos seus desejos, sonhos e fantasias.

Naveguem sem medo de abismos além do horizonte, pois a Terra não é plana, creio.

José Roberto E. Xavier
Cadeira 24 – Patrono Alberto de Oliveira


Pronunciamento de Posse de Gonçalo Silva Júnior à Academia de Letras da Grande São Paulo, em 27 de novembro de 2019, na Cadeira 21, Patrono José Lins do Rego, anteriormente ocupada pelo escritor Hildebrando Pafundi.

Excelentíssima Sra. Maria Zulema Cebrian,
Presidente da Academia de Letras da Grande São Paulo;

Excelentíssimo Dr. José Roberto Xavier, meu padrinho neste momento tão especial;

Nobres colegas acadêmicos;

Senhoras autoridades presentes;

Minha família e meus amigos,
que deixaram seus afazeres para vir nesta solenidade no meio da semana para me prestigiar:

Chegou o momento, finalmente, de expressar as minhas indescritíveis alegria, gratidão e honra porque, diante de todos vocês, passo a fazer parte desta ilustre Academia de Letras da Grande São Paulo, que tanto tem a ver com minha paixão maior, o mundo dos livros, ao qual dediquei toda a minha vida.
Torno-me, assim, parte de um lugar que é a casa das palavras e das ideias, o lar de quem ama a literatura e a escrita em suas múltiplas – principalmente a prosa e a poesia. Neste lugar tão nobre se celebra o dom – que não sei se tenho – para fazer a arte da escrita e, consequentemente, estimular o pensar, o refletir e levar as pessoas, por meio da criação e da informação, a transformarem o mundo em um lugar melhor.

Sinto-me à vontade para dividir com meus novos colegas essa ligação que temos pelo exercício da escrita criativa, imaginativa, poética. Encaro essa nova e desafiadora experiência como um presente da vida, uma compensação por ter me dedicado tanto ao ato de construir ou reconstruir vidas e abrir as portas da percepção por meio de minhas biografias.

É um prêmio que me foi ofertado por vocês, a partir da iniciativa do agora colega José Roberto Xavier, que me honrou com a indicação do meu nome para fazer parte desta distinta instituição de notáveis, em cumplicidade com sua esposa, nossa querida Sônia Xavier. Por seu intermédio e dos acadêmicos que julgaram meus livros, ocupo a cadeira 21, cujo patrono, pude escolher, é o meu escritor preferido, José Lins do Rego.

Para mim, aliás, Fogo Morto é o maior romance da língua portuguesa e tenho convicção que inspirou Gabriel Garcia Márquez a escrever sua obra-prima consagrada Cem anos de solidão. Quem não concordar, podemos discutir depois e creio que teremos bastante tempo para isso. Sobre Zé Lins, creio que poderia falar horas, pois, sem falsa modéstia, é grande minha intimidade com sua obra.

Mas vou contar apenas uma historinha que mostra meu interesse por tudo que ele escreveu e por sua biografia. Dos romances do ciclo da cana de açúcar às crônicas e memórias, li tudo. Em 2001, por ocasião de seu centenário, fui aos oito engenhos de sua família, na região de Pilar, na Paraíba, e entrevistei em Recife quatro irmãs dele, a mais velha com 94 anos. Foi ela quem me fez uma revelação. Contou-me que Zé Lins, quando criança, aos dez anos de idade, matou um rapaz, acidentalmente, com uma arma de fogo da tia.

Isso rendeu um momento profissional único para mim, pois essa informação teve bastante eco, após ser publicada na Gazeta Mercantil e até rendeu editorial em O Estado de S. Paulo. Desde então, permite que compreendamos melhor porque alguém passou toda a vida tentando recriar a própria infância em tantos romances fabulosos. Em especial, Menino de Engenho e Meus verdes anos.
Tal honraria, quando me torno membro desta casa, remete-me, por gratidão, a alguns nomes que gostaria de lembrar. O primeiro deles, é de uma pessoa que não pôde estar presente, porque nos deixou há quase quatro anos. Meu pai, de quem herdei o nome e tenho enorme orgulho disso, era um homem ambicioso. Não se contentava com pouco.

Quando fiz a Primeira Comunhão, por exemplo, emocionado, chamou-me a um canto e disse, na sua simplicidade de homem do interior, devoto fervoroso de sua religião: “Eu queria que você fosse Papa”. Não falou para que eu passasse antes pelos postos de padre, bispo, cardeal, arcebispo etc. Foi direto. Papa. Só Papa.

Com o tempo, viu que eu não levava jeito para a coisa. E mudou o foco. Como eu usava óculos de grau, minha avó paterna botou na cabeça dele que eu tinha cara de médico e, portanto, deveria ser doutor. Deixe-me levar por isso e tentei, juro que tentei, mas não era minha vocação. Nunca me imaginei médico. Meu negócio era ler e escrever. Desde os dez anos de idade, fazia jornais mimeografado – como eu gostava daquele cheirinho de álcool perfumado que saía da impressora. E virei jornalista.

Meu pai se chateou por um tempo. Até meu primeiro livro cair em suas mãos. Sua reação de orgulho foi, mais uma vez, seca, direta, com duas perguntas. “Foi você mesmo quem escreveu?” Respondi que sim. “Quantos livros precisa escrever para você fazer parte da Academia de Letras?” Não pude deixar de achar graça e dizer: “Menos, menos, isso nunca vai acontecer”. Bom, aqui estou.

Seu sonho, portanto, está sendo realizado.

Mas, para que eu fugisse da medicina, uma outra mão não menos importante sempre esteve estendida para mim, a da minha mãe, cúmplice de toda a vida, Dona Arminda, que está aqui, o que me enche de alegria e completa a minha noite, pois fez um enorme sacrifício para chegar aqui, por causa de problemas de saúde.

Quis o destino que ela não fosse longe nos estudos, por falta de oportunidade. Mas materializou nos quatro filhos todos os seus sonhos de estudos – uma prioridade única sua e do meu pai. “Os pais só podem deixar para os filhos duas coisas: honestidade e uma profissão”, repetiam sempre.
Minha mãe é uma das pessoas mais inteligentes que conheci em toda a vida e imagino aonde ela poderia ter ido se tivesse estudado mais. Cito ainda, minha irmã, Rita, também aqui, como protetora de toda a vida, sempre na retaguarda. Tenho certeza que, neste momento, elas se sentem plenamente orgulhosas e realizadas.

Por último, um nome em especial, preciso destacar: Ana Luísa, que me acolheu com imenso carinho e amor aqui em São Caetano nesses últimos doze anos – juntamente com seus pais e seu irmão, Seu Alberto, Dona Mara e Luís Alberto – e suporta minhas manias por livros, filmes e escritas com uma bondade e ternura que jamais experimentei em toda a minha vida. Não só tolera, aliás, como alimenta, com mimos literários constantes. A ela, dedico este momento.

A todos vocês desta Academia, inclusive nossa dedicada secretária e faz-tudo Cidinha, prometo honrar o compromisso que me foi dado e que assumo com todos vocês. Prometo levar o nome desta entidade para todos os lugares e honrá-lo de todas as formas.

Muito obrigado.

Gonçalo Júnior

Cadeira 21 – Patrono José Lins do Rego


DEIXAR DE VIVER É UMA GRANDE PENA

Capítulo final da Biografia do escritor Rubem Alves, É uma pena não viver, publicada pela Editora Planeta em 2015.

A velhice chegou para Rubem em uma experiência vivida no Metrô de São Paulo. Ele tinha pouco mais de 60 anos. “Eu era um homem maduro, músculos firmes, cabelos discretamente grisalhos. Era, sem dúvida, a minha melhor idade. Entrei no vagão lotado, segurei-me em um balaustre, confiante em mim mesmo, olhei em volta”. Uma jovem de uns vinte e cinco anos o olhou sorridente, parecia confirmar que aquela era a sua melhor idade. Ao menos ele teve essa impressão, no primeiro momento.

Pensou que fosse um flerte, encheu-se de autoconfiança. Foi, então, que a jovem se levantou e lhe ofereceu o seu lugar. Ele aceitou. “Fiz o resto da viagem sentado, olhando fixamente para a sua bolsa à altura do meu nariz porque tinha vergonha de olhar para o seu rosto”. O gesto delicado da mocinha “disse” a Rubem que sua idade não era a melhor idade. Daí para frente as confirmações foram se sucedendo, sempre a lembrá-lo de que a aquela não era a melhor idade.

Na festa de aniversário de uma das suas noras, solidamente sentado no jardim, veio uma senhora na melhor idade dela cumprimentá-lo. “Dou o impulso para me levantar e abraçá-la, mas ela, delicada, como a moça do Metrô, fez-me lembrar que a minha idade não era a melhor idade”. Com uma voz carinhosa disse: “Não é preciso se levantar. Fique sentadinho aí…” Rubem ouviu “sentadinho” no diminutivo. Para ele, o termo dizia coisa muito grande: o tamanho da sua idade. “Se eu fosse um jovem, ela não teria usado o diminutivo. Mas agora a situação se agravou. Agora são senhoras que, com sorrisos beatíficos, oferecem-me lugar na fila do supermercado e são senhores que concluem: ‘O ancião precisa de ajuda…’”

Alguns dias antes de escrever a crônica sobre esse tema, Rubem estava parado ao lado de um semáforo esperando a luz verde se acender quando um jovem, do lado de lá, viu-o e, ato contínuo, desafiando os carros, atravessou a avenida para lhe oferecer o seu braço como ponto de apoio. O escritor ficou mais preocupado ainda. Todos esses gestos gentis, concluiu ele, revelavam que aqueles que oferecem o lugar na fila, que colocam a mão no ombro para manter o idoso “sentadinho” ou ajudam a atravessar a rua, sabem a verdade óbvia: certa idade não é a melhor idade. “Todos sabem? Algumas companhias aéreas nos aeroportos insistem em não saber”, ressalvou ele. “Elas nos chamam para o embarque dizendo que a nossa é a melhor idade, apesar do reumatismo, da calva, da bengala, dos músculos flácidos, dos ouvidos surdos, dos corpos segregados do amor”.

Rubem lembrou das Sagradas Escrituras, que dizem a verdade e anunciam os dias em que uma pessoa dirá: “Não tenho neles prazer. São os dias em que os guardas da casa, os braços, tremerem e as pernas bambas não conseguirem levantar o corpo. E se cerrarem as janelas, os teus olhos, e os teus lábios se fecharem: o dia em que não puderes falar em voz alta, quando tiveres medo do que é alto,e te espantares no caminho, e o teu cabelo ficar branco, e um simples gafanhoto for muito peso para tuas forças, porque vais para a casa eterna… Brumas e espumas. Tudo são brumas e espumas…”

O escritor não queria ser incluído entre as pessoas felizes que gozavam dos prazeres da “melhor idade”. Pediu que o chamasse pelo nome verdadeiro apenas: “idoso”. Para ele, se é velho quando, para descer uma escada, precisa segurar firme no corrimão. Ou quando os olhos se voltam para baixo, a fim de medir o tamanho dos degraus e a posição dos pés. “Quando eu era moço não era assim. Não segurava no corrimão e não media degraus e pés. Descia os dois lances de escada do sobrado do meu avô com a mesma fúria com que um pianista toca o prelúdio 16, de Chopin.”.

Mas, no dia em que o pé começou a tropeçar, sua mente compreendeu que eles, os pés, já não sabiam como sabiam antes. “Agora é preciso o corrimão. Depois, virão as bengalas, corrimões portáteis que se leva por onde se vai”. A velhice também aparecia quando, no restaurante, é preciso cuidado ao se levantar. “Moço, as pernas sabem medir as distâncias que há debaixo da mesa. Mas, agora, é preciso olhar para medir a distância que há entre o pé da mesa e o bico do sapato”. Afinal, havia sempre o perigo de que o bico do sapato esbarrasse no pé da mesa e a pessoa se estatelasse no chão.

Quando se é velho, lembrou Rubem, até uma pequena queda pode se transformar em catástrofe. Há sempre o perigo de uma fratura. “A gente é velho quando entra no box do chuveiro com passos medrosos e cuidadosos. Há sempre o perigo de um escorregão. Por via das dúvidas mandei, instalar no box da minha casa uma daquelas barras metálicas horizontais que funcionam como corrimão”. A velhice chega ainda quando começa a ter medo dos fotógrafos. “Fugir das fotos de perfil porque nelas as barbelas de nelore aparecem”. Nelore, explicou ele, é um boi branco – “os pastos estão cheios deles, vivos, e as mesas também, sob o disfarce de bifes”. E eles tem uma papada balançante, as barbelas, que vai da ponta do queixo até o peito. “Velhice é quando as barbelas de nelore começam a aparecer. Aí vem a humilhação conclusiva. Prontas as fotos eles nos mostram e dizem: ‘Como você está bem!’”

E se é velho quando, tendo de subir ao palco para dar uma palestra, tinha sempre uma jovem simpática que oferece a mão, temendo que o convidado se se desequilibre e caia. “A gente aceita o oferecimento com um sorriso. Nunca se sabe…” Por fim, disse ele, se é velho no momento em que fica triste e envergonhado ao contemplar o corpo nu, refletido no espelho do banheiro.
Em suas reflexões sobre esse período da vida, Rubem achava que ser velho era um jeito diferente de lidar com fotografias e espelhos. Citou, mais uma vez, Adélia Prado: “Adélia é amiga de comer frango com quiabo, angu e pimenta: o jeito de escrever um nome é um jeito de pôr a pessoa portadora daquele nome numa prateleira”. Por suas próprias palavras, amava a natureza e as pessoas com mansidão e ternura. Certa vez, disse que não escolhia seus amigos pela idade, embora muitos deles sempre foram mais velhos que ele. Nesse caso, não sabia explicar por que.

Também não selecionava os amigos pela opção sexual, embora a maioria deles fossem mulheres. Mulheres sempre o fascinaram, encantaram-no. Mas tinha amigos gays e lésbicas e adoraria ter entre eles travestis, transexuais, conhecer seus mundos, suas alegrias, tristezas, dramas e preconceitos. Não teve chance de viver isso. Muito menos escolhia pela cor da pele, apesar de ter uma queda por mulheres negras e mulatas, gostava demais do seu dengo, da sua malemolência. “Não escolho meus amigos se eles podem andar normalmente, se usam muletas, embora um dos meus melhores amigos no colégio fosse assim, por causa de uma paralisia infantil”.

O critério usado por ele era a pupila, pelo brilho que dali emanava que olhava para ela, pela simpatia que saía dali, pela cumplicidade que só sua sensibilidade conseguia captar com facilidade. Mesmo que tivesse errado demais na vida ao escolher seus amigos, já pupilas não tinham capacidade para expressar caráter. “Essa é a grande diferença de todas: o que define uma pessoa é o caráter. Quando o falta em alguém e você não percebe, a decepção vem em dobro”. Quem o conhecia sabia que ele se referia principalmente a antigos companheiros da Igreja em quem tanto confiou e o traiu sem remorsos.

Nesses momentos em que a solidão era sua única companheira, além de ouvir música, o debilitado Rubem buscava meios de se manter ativo. Por toda a vida, ele continuou a fazer um de seus passatempos preferidos, sempre que queria se desligar do mundo: armar quebra-cabeças. E, assim, esquecia-se de tudo. Houve só um que o derrotou, formado por um desenho e com mil peças, que o levou a desistir. “Só fico triste quando vejo quebra-cabeças formados colados em um compensado e transformados em quadros. O quebra-cabeças foi assassinado. Ninguém poderá ter mais o prazer de montá-lo. O quadro é a sua urna funerária”.

Foi entre essas reflexões que participou de um de seus últimos projetos literários, o livro Rubem Alves & Moacyr Scliar – Conversas sobre o corpo e a alma, lançado em 2011 pela Saberes Editora. Em um bate-papo informal, mediado pelo editor Odorico Monteiro, também médico e doutor em saúde pública, eles trataram dos dois temas dos pontos de vista médico e literário. Rubem explicou seu gosto pelo uso de metáforas a partir de elementos do poético, de modo a levar o leitor a fazer de modo mais envolvente as reflexões que ele propunha em seus textos. Scliar, que também era médico e romancista, explicou que a medicina, durante muito tempo, preocupou-se mais com a alma do que com o corpo – via este apenas como um invólucro para uma alma eterna que teria o céu quando o corpo fenecesse.

Com o conhecimento que ambos tinham da Bíblia, eles conversaram sobre o fato do livro sagrado mostrar que as doenças eram castigos divinos e a cura resultado da compaixão de Deus, por meio de suas dádivas e milagres. Assim, tanto a alma quanto o corpo poderiam sofrer, mas nem todos os males do primeiro – como a melancolia – eram possíveis de ser diagnosticados como doenças físicas.

Por seu lado, os médicos preferiam lidar com o que era perceptível, com fundamentações teóricas e tratáveis com medicamentos e cirurgias. Rubem e Scliar, então, perguntavam o que fazer com tormentos como a inveja, o ciúme e avareza, também capazes de destruir psicologicamente as pessoas, a ponto de matá-las.

A espirituosidade de Rubem aparecia nos momentos mais difíceis. Um dia, perguntou a um médico: “Doutor, agora que estamos sozinhos, quero lhe fazer uma pergunta: ‘Será que eu escapo dessa?’ Mas por favor, não responda agora; sei o que o senhor vai dizer: ‘Estamos fazendo tudo o que é possível para que você viva’.” E emendou, sem deixar o outro falar, que não lhe interessava nem o que ele e nem o que todos os médicos do mundo estavam fazendo. Por fim, completou: “Sou uma pessoa inteligente, sei a resposta, sei que vou morrer”.
Rubem disse que via a morte como um grande mistério e um abismo silencioso. “Não me sinto preparado e não sei se haverá uma forma de se estar preparado. Acho que todos têm medo”. Mas sua aproximação se tornava inevitável com a velhice, tempo quando a alma se preparava para o voo derradeiro, como ele mesmo afirmou, no qual não se poderia levar nada, não havia espaço para bagagens, mesmo aquelas de sonhos, desejos e fantasias. Para ele, esse momento teria de ter leveza absoluta. “Afinal, tudo o que é sólido dissolve-se no ar”, acrescentou.

A sensibilidade lhe permitiu, à medida que ficava velho, tornar cada vez mais evidente que as coisas não possuíam substância, pois o tempo parecia passar cada vez mais rápido, de forma que todos se tornariam “conscientes da liquidez dos sólidos; as pessoas e as coisas ficam parecidas com reflexos e rugas efêmeras na superfície da água”. Só os sonhos, em sua opinião, não envelheciam nunca e não podiam ser jogados fora. Assim como havia porta-retratos onde se guardava as memórias que se amava e não desejava perder, Rubem achava possível imaginar as casas como porta-sonhos.
“Sonhos não só para serem vistos, eles contam histórias, e casas são sonhos a serem interpretados”. Ou seja, ao se observar os objetos que habitam uma casa é possível fazer um esboço de psicanálise daquele que os colocou ali, como companheiros da sua solidão. Uma casa, portanto, seria uma revelação da alma daquele que a construiu como um ninho. “Pois não é isso que toda casa deveria ser, um ninho onde o corpo se ajusta? O pássaro forra o ninho com penugens para que os seus filhotes o sintam com uma extensão de si mesmo”.

Mesmo com essa serenidade, para ele, morrer era difícil. Quando veio o câncer, havia, em sua opinião, a dor da morte e a dor das mentiras. Seus parentes, quando ele lhes sugeria o tema da morte, logo o evitavam: “Tira essa ideia de morte da cabeça. Logo você estará andando de novo”. Tentavam enganá-lo, disse Rubem, mas por amor. Ficava, então, em uma grande solidão. Não havia ninguém com quem pudesse conversar honestamente sobre o risco que corria.

As visitas vinham, sentavam-se, comentavam as coisas do cotidiano. Rubem sorria delicadamente. Para ele, soava estranho que uma pessoa que estava morrendo tivesse a obrigação social de ser delicada com as visitas. As coisas sobre que falavam não o interessam. “Estava muito longe remando sua canoa no grande rio, rumo à terceira margem”, observou depois.

Rubem sentia que seu tempo seria curto e não podia gastá-lo com banalidades. Os religiosos não o ajudavam. Estavam mais preocupados em saber coisas do outro mundo. Mas o outro mundo não era problema para o ex-pastor que virou psicanalista, educador, escritor e, não formalmente, pensador.

O maior desejo de Rubem era que as pessoas que o amavam lessem poemas ou ouvissem com ele suas músicas preferidas. “Para mim a beleza é o rosto sensível de Deus. A proximidade da morte trouxe-me lucidez aos meus sentimentos. Tristeza, é isso que enche a minha alma. A vida está cheia de tantas coisas boas! Não quero partir”.

Em um de seus últimos artigos, imaginou um monólogo seu dirigido a todos os médicos: “Doutor, sua missão é lutar contra a morte. Mas a última batalha é sempre perdida. Sei que nas escolas de Medicina se ensina sobre a morte como um fenômeno biológico. Mas o que lhe ensinaram sobre a morte como uma experiência humana? O morrer humano não pode ser dito com a linguagem da ciência. A ciência só lida com generalidades. Mas a morte de uma pessoa é um evento único. Minha morte será única no universo! Uma estrela vai se apagar. Os remédios que o senhor receita são inúteis. O senhor sabe disso. São ilusões para manter acesa esperança”.

Em maio de 2009, quando falou ao Correio de Uberlândia, Rubem disse que queria uma “morte serena”. Sua vontade era morrer dormindo. E ressaltou: “Eu gosto da vida, tenho alegria de viver. Eu amo muito gente, criança, velho, adulto, mulher, moça. As pessoas têm uma demonstração tão carinhosa comigo. Eu me sinto muito amado e isso me dá muita felicidade”.

Ao ser perguntado se tinha medo da morte, o escritor respondeu: “Não, nem um pouquinho. Não acredito em nada do lado de lá, morreu acabou. O que eu vou fazer do outro lado? Céu? Céu é um tédio. Outra coisa que acho horrível é ser um espírito. Já imaginou? Eu chegar aqui, ficar flutuando, mandando mensagens. Que coisa horrível. Você não pode sentir o vento, não pode tomar banho de mar. Não quero ser espírito. Eu não tenho medo da morte, tenho tristeza de morrer, porque a vida é muito boa”.

Rubem dizia que passou a alimentar o sonho “muito bobo” de morrer dormindo quando estava acompanhando idosos que tiveram Acidente Vascular Cerebral (AVC). “É uma coisa tão triste, tão triste. Não quero passar por esta humilhação. Porque é humilhante. Você foi um homem amado, amante e de repente está lá, mostrando a bunda para as enfermeiras, para limparem seu traseiro. Eu acho isso terrível. Eu quero uma morte serena, sem perceber.”
Fazia algum tempo, Rubem começou a escrever sobre a morte e a conversar sobre isso com as pessoas próximas. A ponto de dar instruções a algumas delas depois que partisse. Na carta que escreveu aos três filhos, em 2005, e da qual o amigo Carlos Brandão leu algumas passagens em seu velório, ele pediu para ser cremado. Em um artigo, explicou por que queria ser cremado. “A razão pode ser tola. Mas é que tenho claustrofobia. A ideia de estar trancado num caixão sem janelas me é insuportável. Sei que estarei morto e portanto nada sentirei. Mas agora, quando penso no caixão fechado, estou vivo: preciso de espaço, preciso de vento. Neruda declarou que os poetas são feitos de fogo e fumaça”.

Imaginar-se fechado no escuro era uma ideia que o apavorava. Lembrou que Neruda disse certa vez que os poetas eram feitos de fogo e fumaça. “Cremado, nada poderá me prender. Eu me transformarei em fogo e fumaça e subirei na direção dos céus”. Por outro lado, ressaltou ele, bem humorado, que era preciso não se esquecer da pergunta que fez o poeta modernista, dramaturgo e crítico literário americano T. S. Eliot: “E o cadáver que você plantou no seu jardim, já começou a brotar?”. “Pode ser que cada sepultura seja um jardim! Penso, então, em combinar a terra, o fogo e a fumaça”.
Disse ainda que, “cremado, minhas cinzas serão soltas, livres, ou no alto de uma montanha, como a Pedra Branca de Pocinhos, de altura de urubu não ir, como disse Riobaldo (Grande sertão: veredas), ou nas águas de uma cachoeira na Serra da Canastra, navegando em busca do mar sem fim”. Orientou também que, enquanto pessoas amigas lessem os seus poemas mais queridos, as suas cinzas fossem espalhadas ao redor de um Pé de Ipê. Foi tão cuidadoso, que preparou uma pasta com a reprodução de todos eles, pela ordem que deveriam ser recitados, no total de sete. Imaginou que seria um número razoável para uma cerimônia fúnebre.

O primeiro seria do próprio Rubem, “Vou plantar uma árvore”, publicado no livro A gestação do futuro. Os demais eram de seus poetas preferidos: Manoel Bandeira (“O último poema”), Fernando Pessoa (“São plácidas todas as horas que perdemos”), Vinicius de Moraes (“O haver”), Carlos Castañeda (“As palavras do bruxo Dom Juan”), Cecília Meirelles (“Elegia”) e Alberto Caeiro (“Pensar em Deus é desobedecer a Deus”). O de Castañeda falava mais direto da morte: “A morte é nossa eterna companheira/Ela está sempre à nossa esquerda, ao alcance do nosso braço/A morte é a única conselheira sábia que temos”.
Certa vez, Rubem escreveu sobre a morte, que o esperava em qualquer esquina da vida. Relembrou que o poeta Robert Frost, um dos preferidos e mais citados por ele, pediu que, na lápide do seu túmulo, escrevessem uma frase simples, mas que seria o resumo da sua vida: “Ele teve um caso de amor com o mundo.” Rubem passaria a repetir em artigos, entrevistas e palestras, que deveria ser assim seu epitáfio, com leve alteração do que pediu Frost: “Ele teve um caso de amor com a vida”.

Mas esse caso com a vida continuava intenso no começo de 2014. Apesar de sentir a morte se aproximar, Rubem parecia encará-la cada vez mais com serenidade de quem viveu intensamente. Em uma de suas últimas entrevistas, afirmou: “Já tive medo de morrer. Não tenho mais. A Morte é minha companheira. Sempre conversamos e aprendo com ela. Quem não se torna sábio ouvindo o que a Morte tem a dizer está condenado a ser tolo a vida inteira”.
A morte para ele tinha a ver com a religião, que continuava a ser um ponto polêmico em sua vida. “Pois não é que Deus anda me pregando umas peças? Meus amigos, cada um religioso do seu jeito, tentam me ajudar, apaziguar Deus, acender velas, rezar… E uma amiga querida, ex-aluna, disse-me em tom carinhoso que eu ficaria melhor se abandonasse minha incredulidade e acreditasse na reencarnação, porque com a reencarnação tudo se explica e há a certeza de um final feliz. Mas ela não imaginava que eu já tinha resposta para essa pergunta”.

Seria esta: “Pois saiba você que eu acredito muito na reencarnação. Faz muito tempo, anunciei a minha conversão em um artigo de nome esquisito:‘oãçanracneeR’. Reencarnação ao contrário: não de trás para adiante mas de diante para trás. O futuro não me interessa. Eu nunca o vivi por isso não posso amá-lo”.

Rubem acrescentou que não queria ir para o céu porque o tempo infinito deveria ser de um tédio insuportável. E o mais terrível era não ter saída se o felizardo se cansasse de ficar por lá. “O céu me dá claustrofobia. Além do que não quero evoluir. Muitas coisas não podem e não devem evoluir: saíras de sete cores, riachinhos, ipês floridos, a Nona sinfonia, uma preta jabuticaba…”

O que seria uma jabuticaba evoluída? Uma jabuticaba cúbica? “Uma jabuticabeira florida e perfumada e, depois, coberta de esferas negras brilhantes e túrgidas depois da chuva — esse objeto é divino, sem passado e sem futuro, presente puro destinado à eternidade”. Rubem não podia imaginar que alguma evolução lhe pudesse ser acrescentada. “O que eu quero não é evoluir. O que eu quero é viver de novo o passado que vivi, com muito mais intensidade, sem os sentimentos de culpa com que minha religião aprisionou o meu corpo, as minhas ideias e os meus sentimentos.”

A castração do presbiterianismo, sem dúvida, deixou traumas profundos em Rubem até o fim. Tanto que, não raro, pegava-se agindo a partir de preceitos que lhe foram impostos quase inconscientemente. Fora castrado e deixou passar os melhores anos de sua vida sem usufruí-los. Deixou de se divertir, aproveitar os prazeres que só descobriria na idade adulta. “Tenho tristeza pelos pecados que não cometi”, afirmou ele. “Eram pecados tão inocentes.” Não citou, porém, ao menos um deles. “Assim, quando já são poucas as jabuticabas na minha tigela, rezo o meu Pai-Nosso herético — ou erótico:‘O prazer nosso de cada dia dá-nos hoje…’.”

Embora o Parkinson fosse uma doença devastadora, Rubem começou o ano de 2014 sereno. E não foi diferente ao longo do primeiro semestre. O mal que o enfraquecia aos poucos, forçando a parada gradativa de suas tarefas e compromissos como palestras e escritas semanais de crônicas para jornais, não minou sua lucidez, preservada de modo intacto, segundo a filha Raquel. E foi assim que aceitou um convite dela para que se arrumasse pois ele participaria de um evento em sua homenagem na noite do dia 31 de maio. Ele imaginou que seria algo que lhe faria muito bem e daria alegria, mas não quis perguntar mais nada.

Raquel apenas o alertou para que se preparasse, pois poderia vivenciar momentos de grande emoção. E assim aconteceu. Passavam das 19 horas, quando ele adentrou com Raquel a casa da Rua Frei Antonio de Pádua, 326, onde funcionava o Instituto Rubem Alves. Ele jamais estivera ali antes. O imóvel fora alugado pela filha, que o decorou, em parceria com Ana Paula Huzinker, amiga a quem Rubem confiara conduzir a instituição com Raquel.
Na verdade, o instituto havia sido fundado oficialmente em 15 de Setembro de 2011, no mesmo dia em que ele completou 78 anos de idade. Inicialmente, a ideia era preservar e perpetuar todo seu acervo e sua obra e também marcar a presença do seu pensamento na educação no Brasil. Com o tempo, porém, sua missão foi ampliada e deveria ser um marco na educação, através do desenvolvimento de programas inovadores e alternativos, por meio de convênios, termos de parceria e cooperação com entidades públicas e empresas privadas.

Como lembra Raquel, o pai tinha o sonho de que sua obra fosse cuidada depois que partisse ou desencantasse, como preferia dizer. “Ele falava isso sempre, pedia-me para zelar pela obra escrita dele. Ana, por outro lado, mostrou-lhe o potencial que tinha para se trabalhar em cima do que ele havia escrito, no momento em que não estava pronta para fazer isso. Até que em 2011, chamei ela para tratarmos do instituto sem falar com ele”. Ana Paulo explicou a Raquel que seria preciso mexer em questões contábeis e fiscais para fazer o Instituto Rubem Alves existir de fato. “Por isso, tive de romper com certos pontos de seus negócios, trocamos de contador e a Fundação começou a existir no papel”.

A relação de Ana Paula com Rubem era antiga e familiar. Sua mãe, a professora e dona de casa Maria Regina Huzinker, incentivada por duas amigas, ambas alunas de Rubem na Unicamp, passou a assistir suas aulas como ouvinte. Era a década de 1980 e os dois se tornaram amigos, a ponto de Rubem frequentar sua casa, com Raquel, ainda pequena. A partir desse momento, Ana Paula passou a acompanhar a mãe nos lançamentos de livros e virou leitora e admiradora do escritor.

Adulta, já formada em artes plásticas e propaganda e marketing, ela se aproximou de Raquel e as duas se tornaram amigas. Ela trabalhava como gerente de marketing em uma empresa da área de saúde e indicou a filha de Rubem para desenvolver um projeto de paisagismo. “Raquel tinha um trabalho diferenciado de paisagismo que me impressionou muito, eu a indiquei e a chamamos”, observa. Ela também ficou mais próxima de Rubem também por causa do ilustrador Paulo Branco, seu marido na época, que fez vários desenhos para os livros publicados pela Editora Papirus, inclusive infantis.
Desse convívio vieram conversas para fazer um trabalho mais amplo em relação à obra de Rubem. “Ninguém estava muito focado quanto a zelar por seus livros e o que representavam”, justificou. Com os problemas de saúde dele a partir de 2010, essa preocupação ganhou força. Segundo Ana Paula, Raquel percebeu que ele estava muito frágil e cada cirurgia era uma incógnita, uma incerteza se daria certo, e fez força para criar o instituto.

Enquanto a ideia de um instituto era amadurecida, Érica, a assessora de Rubem que substituiu Christian, teve problemas na gravidez e se afastou. Ana Paula ficou em seu lugar e passou a cuidar da agenda em meio expediente. No resto do dia, os dois conversavam sobre a estruturação do instituto. “Era uma troca de ideias e de palavras em que eu aprendi muito”, diz ela. Rubem não fazia mais palestras e suas atividades se limitavam a entrevistas, sempre em seu apartamento, acompanhadas por Ana Paula. “Ele começou a ficar muito inseguro, à medida que o Parkinson avançava, e preferia fazer tudo em casa”.

Raquel contou que a amiga “entrou de cabeça e começou a abrir contatos para parcerias com o Instituto para palestras sobre a obra e o pensamento de Rubem com especialistas, além de desenvolver projetos inovadores de educação”. O conceito, desse modo, foi ampliado para a preservação e perpetuação da obra dele como patrimônio cultural da humanidade, a partir do cuidado com seus livros, na relação com as editoras, além de desenvolver oficinas de contação de histórias e de brincadeiras com crianças. A partir dos seus textos, foram montados cinco módulos de capacitação de professores e pedagogos.

Até que veio o evento oficial de abertura do instituto no penúltimo dia de maio de 2014. “Quando a gente mudou a sede do instituto, resolvemos fazer uma surpresa para papai e montamos tudo para ser um momento inesquecível e que ele não desconfiasse”, recorda Raquel. “Contratei um fotógrafo e marcamos o evento para 30 de maio”. A sala de reunião estava cheia de cadeiras e Rubem chegou alegre, ainda sem se dar conta.

Seria uma festa? “Chegamos meia hora antes do resto dos convidados porque queríamos apresentar o lugar para ele sem muita gente em cima”, explica Raquel. Ele, então, começou a perceber do que se tratava. “Ele estava bem velhinho e foi fácil enganar ele”, conta a filha, bem humorada. Ao contaram onde estava, ele não perdeu o humor: “Essa espada vocês roubaram de mim, lá de casa” – referia-se àquela que recebeu ao concluir o CPOR.

Um pouco mais de um mês depois do evento, na primeira semana de julho, Rubem começou a ter um comportamento fora dos padrões para quem, mesmo debilitado, gostava de se mexer, fazer coisas, assistir televisão, ouvir música e ler. Lidia notou que ele dormia além da conta, ao longo dos dias e em diversos horários, não só à noite. Acordava pela manhã, comia pouco e voltava a se deitar. “Minha mãe achou estranho e o levou para o hospital”, lembra Raquel.

Mesmo debilitado, ele entrou andando no Hospital Centro Médico de Campinas, na tarde da quinta-feira, dia 10 de julho de 2014. De imediato, os médicos constataram que o Mal de Parkinson estava em um estado bem avançado, além de ser constatado um quadro grave de pneumonia, pela dificuldade que apresentava para respirar e pelo cansaço excessivo. Seu quadro permaneceu estável na quinta, mas piorou na sexta, quando teve queda de oxigenação e optou-se por levá-lo para a UTI e entubá-lo no começo da noite, de modo a garantir uma melhor oxigenação.

Nesse momento, teve a última conversa com a família. Como Raquel sofria demais em vê-lo naquela situação, Rubem tentou manter com ela uma conversa serena. Em seguida, pediu-lhe que chamasse Ana Paula, secretária, amiga e a mesma que montara o Instituto com a filha do escritor. Os dois conversaram por algum tempo. Ele lhe pediu para que ficasse ao lado de Raquel cuidando de sua obra e que avisasse à imprensa que “Rubem Alves estava morrendo”. Não justificou o pedido, mas sabia que era muito querido por seus leitores e talvez tivesse pedindo para que orassem por ele.

A partir desse momento, ele entrou em coma e não mais recuperaria a consciência. Rubem permaneceu nesse estado até o sábado da semana seguinte, dia 19, quando morreu às 11h50. “Embora tivesse o lado meu de esperança, no dia seguinte eu senti que ele não ia voltar. E tivemos essa certeza na terça”, lembra Raquel. “Como era médico, meu irmão Sérgio tinha um pacto com meu pai de que não usaria meios mecânicos ou de medicamentos para prolongar o sofrimento dele”.

A experiência adquirida ao longo de oito décadas ensinou a Rubem que haveria sempre um momento da vida em que era preciso perder a esperança. Ao abandoná-la, a luta cessa e vem então a paz. Mas havia algo que os remédios podiam fazer: evitar a morte com dor. “Muitos médicos se enchem de escrúpulos por medo de que os sedativos matem o doente, preferem deixá-lo sofrendo a fim de manter limpa e sem pecado sua própria consciência. Com isso, transformam o fim harmonioso da melodia que é a vida em um acorde de gritos desafinados”, escreveu.

Ele não concordava com isso. “Somos humanos na medida em que brilha em nós a esperança da alegria. Quando a possibilidade de alegria se vai, é porque a vida humana se foi. Esse é o meu último pedido: quero que minha sonata termine bonita e em paz”. E assim se fez e o escritor encantou, como disse que seria. A causa da morte anotada pelo médico foi pneumonia. O corpo foi velado no plenário da Câmara Municipal de Campinas, cidade onde o escritor morava desde 1968.

Rubem foi cremado na tarde do dia seguinte, domingo (20), em Guarulhos, na Grande São Paulo, em cerimônia restrita à família. As cinzas seriam espalhadas sob um ipê-amarelo, para atender a um desejo do escritor, segundo anunciou o amigo Carlos Brandão, durante o velório. Estavam presentes amigos mais próximos, Lídia, os três filhos, as duas noras e as cinco netas.
Thais foi informada do agravamento da saúde de Rubem por uma amiga, Cristina Matoso, que fazia parte do grupo Canoeiros. Ela ligou e lhe perguntou se sabia que ele estava internado e que o quadro era complicado. A ex-companheira respondeu que não e pensou, no primeiro momento, que Rubem sairia mais uma vez daquela internação, como vira acontecer diversas vezes. Sem querer acreditar no pior, falou: “Cris, já vivi tantas mortes de Rubem”. Ela comentou depois: “E achei que essa fosse apenas mais uma. Logo em seguida, começou a sair na imprensa notas sobre a saúde dele, que estava muito fraco e se alimentava mal nos últimos meses”.

No sábado, dia 19, por volta do meio-dia, veio o telefonema que ela não gostaria de receber. Do outro lado da linha estava Maria, ex-mulher de Marcos e mãe de sua filha mais velha, Ana Carolina. “Eu estava na casa do meu pai, ele tinha passado mal. Quando ouvi a voz dela, tive um pressentimento ruim e perguntei: ‘Foi Rubem?’” Andreia, a filha de criação dos dois, agora uma adolescente de 15 anos, ficou desesperada quando recebeu a notícia. “Eu já tinha para mim que se acontecesse o pior eu não iria ao velório e ao enterro. Mas minha filha mais velha decidiu que iria e levou Andreia”.

Em seu carro, a custo de muita tristeza, Thais levou as duas até a entrada da Câmara Municipal de Campinas. “Deixei elas, passei na casa do meu pai e voltei para pegá-las”. Na hora que soube e nos dias seguintes, foram momentos difíceis para ela. “Eu não imaginava que ia doer tanto. Eu tive muitos sofrimentos com ele que foram me calçando e eu achava que estava bem endurecida, preparada para o pior, mas a morte me mostrou que não”.

A decisão de não ir ao velório tinha explicação para si mesma. “Havia em mim aquela coisa ruim, uma sensação horrível, da indecisão de ir ou não me despedir dele. Por outro lado, era como se eu tivesse cheia da presença dele ali comigo, me reconfortando, naquele momento. Não sou espírita, nunca senti que sou de determinada religião. Minha família é muito católica e ultimamente tenho ido muito à missa, porque é um canal mais fácil para ter contato com algo mais espiritual. Gosto de saber dessa diversidade desses pensamentos”.

Rubem, recorda ela, era muitas vezes incoerente sobre a continuidade do espírito após o fim e isso, de certo modo, acabou influenciando-a. “Ele dizia que ia acabar tudo com a morte: ‘Você se dissolve, vira vento, borboleta’. Por outro lado, afirmava que iria me encontrar de novo, que sabia que a gente teria uma continuidade. Acho que essa presença que senti muito forte logo após a morte dele, deu-me muita vontade de ir a Pocinhos plantar um Ipê para ele.”

Em silêncio e longe de todos, Thais sofreu a dor da perda naquelas primeiras horas e nos dias seguintes. Nesse período, aconteceram alguns fatos ou coincidências que lhe pareceram inexplicáveis, quase sobrenaturais. Na segunda, dia 21, por exemplo, dois dias depois da morte de Rubem, no fim da tarde, ela se sentia muito mal, quando foi colocar o lixo para fora da casa. Quando abaixou, viu que tinha uma folha única de plátano – aquela que faz parte da bandeira do Canadá –, no mesmo lugar onde deveria colocar o lixo.
Ficou intrigada porque não havia plátano no condomínio onde morava, só a pelo menos três quilômetros de distância. Era uma das árvores que Rubem mais gostava. Quando ia para os EUA, trazia várias folhas, fazia secagem e prensagem e montava quadros com elas. Nesse momento, o telefone de sua casa tocou e ela foi atender. Era Raquel. Disse-lhe que tinha algumas coisas dele para me mandar e que Rubem queria muito falar comigo nos seus momentos finais e tinha pedido meu telefone para uma conhecida.

Foi um choque ouvir aquilo. “Fiquei muito desesperada porque ele queria falar comigo e não conseguiu. Falei com essa pessoa aos prantos, perguntei o que aconteceu. Afinal, Rubem tinha o telefone de sua casa. Mas, como foi internado às pressas e a saúde estava debilitada, não se lembrou do número. “Acho que não era mesmo para eu falar com ele e me despedir”. A amiga contou a breve conversa que tiveram sobre a ex-namorada: “Só disse que queria muito falar contigo e que você foi o grande amor da vida dele”.

As coincidências não terminaram aí. Todo o grupo de amigos em comum sabia ou imaginava que Thais não iria ao velório. Na quarta-feira, dia 22, ela foi levar seu tio Carlos ao dentista, por que sentia muitas dores, devido a um problema de canal. Enquanto dirigia, ele comentou que uma vizinha, dona Sininha, contou que viu uma reportagem no EPTV – telejornal da Globo de Campinas – que dizia que um violonista havia ido ao velório de Rubem e tocado Thais, de Jules Massenet, um trecho mais conhecido da ópera. Como era possível? Ele sabia que a segunda mulher do escritor tinha esse nome? Queria ele homenagear o amor dos dois?

Rubem tinha dado à ex-namorada uma partitura muito antiga da música da época que ele tocava piano. E sempre a recitava para ela. A princípio, Thais não acreditou. “Não pode ser verdade”, disse ao tio. E ele confirmou: “Sim, ela falou que era verdade, o violonista fazia parte da Orquestra Sinfônica de Campinas”. Desesperada, ao chegar em casa, foi procurar na Internet alguma reportagem que falasse desse violonista e da homenagem durante o velório, mas nada achou.

No dia seguinte, quinta-feira, quando seria a missa de sétimo dia, na tradição católica, os amigos resolveram homenagear Rubem na casa da “canoeira” Lenir Santos, no bairro de Barão Geraldo, com pessoas que gostavam de poesia, de beber vinho, de conversar sobre as coisas da vida. Varias delas participaram do grupo Canoeiros, criado por Rubem na década de 1990. Em determinado momento, chegou um amigo de Rubem e Thais, o médico Paulo de Tarso, que disse à anfitriã: “Lenir, tomei a liberdade de trazer um amigo que também é médico, que nunca conheceu, Rubem mas tem grande admiração pelas coisas que ele escreveu. E ele toca violino”.

Ao ouvir o nome do instrumento, veio à lembrança de Thais a história que o tio Carlos lhe contou quando iam ao dentista. Ela pediu a Paulo de Tarso para apresentá-la ao médico. “Perguntei se ele tinha tocado no velório e qual música. Ele respondeu que sim e disse que foi ‘Thais’”. Ela quis saber por que escolheu exatamente aquela, que tinha o seu nome. O médico explicou: “Eu queria ter ido à UTI visitá-lo, mas não consegui e resolvi me despedir dele dessa forma. Não sei por que peguei essa, deu vontade de tocar, veio na cabeça, foi coincidência”.

Thais saiu do evento atordoada, em busca de algum sinal, alguma explicação para aquilo. Se o médico desconhecia a vida pessoal de Rubem, por que escolhera exatamente aquela composição? Seria uma interferência espiritual do ex-companheiro para celebrar o amor que ele lhe dedicou intensamente até seu último suspiro de lucidez? Só uma certeza ela tinha: de que guardaria desde então os melhores momentos de sua vida, que foi ao lado do homem que tanto marcou sua vida. “Eu me sinto privilegiada por ter sido sua companheira e por ele ter sido amada. Eu o amei muito e ainda o amo! Sonho com ele quase todas as noites. Todos os dias penso nele. Ele está comigo, na minha alma, na minha carne”.

Na manhã do dia seguinte à morte de Rubem, seu amigo Carlos Brandão mandou uma mensagem por e-mail “a todas as pessoas amigas de Rubem Alves”. Com o dom de escrever quase poeticamente que ele tinha, começou assim: “Rubem partiu. Como ele tem amigas, amigos, conhecidas e conhecidos, leitoras e leitores por toda a parte e com as mais diversas visões da vida e da morte, acredito que o que acaba de acontecer com ele deverá ser dito e repetido das mais diversas maneiras”.

Ou seja: “Rubem Alves morreu”. “Rubem partiu”. “Ele fez a sua passagem”. “Ele nos deixou”. “Ele viajou”. “Foi chamado à presença de Deus”. “Voltou à casa do Senhor”. “Ele desencarnou”. “Rubem libertou-se da matéria”. “Ele se acabou”. “Finou-se”. “Ele foi para uma dimensão de luz e paz”… “e assim por diante”. Mas se ele mesmo pudesse anunciar o que lhe aconteceu, prosseguiu o amigo, tinha certeza de que recordaria uma fala de um homem que ele leu e amou – João Guimarães Rosa – e diria a todos: “minha gente, eu me encantei!”.

A frase original era: “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. Brandão perguntou, então, se o amigo não estava mais neste mundo ou estava. E recordou algo que se passou entre os dois havia alguns anos. Estavam eles em algum canto de Pocinhos do Rio Verde, sentados em um banco rústico de madeira e com o chão de terra sob seus pés. “De repente, no meio de uma fala solta e mineira, lembro-me de haver perguntado de uma vez a ele: ‘Rubem, eu não quero saber se você crê ainda ou não em Deus. Quero saber de uma coisa, e quero uma resposta sem rodeios. Rubem, pra onde é que você vai quando morrer?’”.

Ele olhou o amigo e fez daqueles silêncios tão dele, quando o que ia dizer em seguida era algo grave, solene ou muito importante. E desenhou no ar com a mão uma curva e apontou com o dedo indicador para a terra aos pés de ambos. E respondeu: “Eu vou para o mesmo lugar de onde eu vim a milhões de anos!”. E os dois ficaram calados por um longo momento. E quando retomaram a conversa, ele explicou que “aquele lugar” não era bem o chão material da terra. “Era o Todo de Tudo. Era o Universo e tudo o mais. Era o lugar da origem de todas as origens. E eu me lembro de haver dito: ‘eu acho que eu também vou pra lá’”.
E não falaram nem da glória eterna de um deus e nem de um interminável coral de anjos vestidos de branco cantando por toda a eternidade. Depois, recordou Brandão, em uma carta que ele escreveu por volta de 2005, o amigo encontrou uma passagem que tinha muito a ver com a conversa deles em Caldas: “Não tenho medo da morte, embora tenha medo de morrer. O morrer pode ser doloroso e humilhante. Mas, a morte? Voltarei para o lugar onde estive sempre, antes de nascer; antes do big-bang. Durante esses bilhões de anos não sofri e não fiquei aflito para que o tempo passasse. Voltarei para até nascer de novo”.

A carta de Rubem a Brandão tinha dez páginas, mas quase nove delas eram transcrições de poemas que ele amou e que queria que fossem lidos no ritual de suas cinzas. “Transcrevo de sua carta algumas poucas passagens que merecem ser conhecidas de todos”. Em seguida, acrescentou o amigo: “A vida humana, diferente da vida dos bichos e das plantas, que se mede por sinais biológicos e elétricos, se mede pela possibilidade de alegria que ela contém. Quando essa possibilidade não mais existe, têm os homens o direito de exigir que a sua vida biológica não seja mantida por meios heroicos, porque cada homem é senhor de sua vida. Há uma hora em que o corpo e a alma desejam partir. Não se deve impedi-los na sua decisão, por meio da força. Fazer isso seria uma crueldade que não se pode admitir”.

A morte do escritor foi noticiada com destaque pela imprensa de todo Brasil e pelas redes sociais. Rubem deixava um legado de 138 livros, publicadas por oito editoras, além de traduções publicadas em doze países – Argentina, Colômbia, México, EUA, Inglaterra, Portugal, Espanha, Alemanha, França, Itália, Romênia e Coreia. Foram obras marcadas por simplicidade e provocação. No primeiro caso, porque defendeu que a felicidade está nas coisas mais simples da vida e da natureza. Provocação porque ele escrevia para ensinar a pensar, quebrando os paradigmas ortodoxos da educação e da teologia.

A presidenta Dilma Rousseff lamentou sua morte na página oficial no Facebook. E outros nomes conhecidos fizeram o mesmo. “Partiu Rubem Alves. Ao morrer mais um dos grandes, cresce nossa orfandade”, escreveu o padre escritor e cantor Fábio de Melo, no Twitter. Gabriel Chalita, deputado federal, chamou-o de poeta da educação e o cientista da liberdade. “Tive a honra de dar muitas palestras com ele, de beber de sua sabedoria, de comungar dos seus afetos”.

Para este livro, o amigo teólogo Leonardo Boff falou de seu legado: “Em verdade, ele está nas raízes da Teologia da libertação. Mais tarde mudou de rumo, ficando com a educação e a psicanálise, que são outras formas de levar a libertação avante. Mas deixou especificamente a Teologia da Libertação, o que sempre achei uma perda para este tipo de teologia, dada a sua criatividade. Μas foi um dos conferencistas mais solicitados do Brasil para muitas questões ligadas à condição humana. Eu, pessoalmente, acho que era um dos escritores que melhor escrevia no Brasil. Seria o meu candidato para a Academia Brasileira de Letras. Mas ela é composta por intelectuais vaidosos e medíocres que não o mereciam”.

Um pouco antes de morrer, Rubem escreveu: “Sou grato pela minha vida. Não terei últimas palavras a dizer. As que tinha para dizer, disse durante a minha vida. Recebi muito. Fui muito amado. Tive muitos amigos. Plantei árvores, fiz jardins, construí fontes, escrevi livros, tive filhos, viajei, experimentei a beleza, lutei pelos meus sonhos: o que mais pode um homem desejar?” Disse também: “Felicidade é coisa rara. Como diz Guimarães Rosa, ela só acontece em raros momentos de distração. Mas, por esses curtos momentos, tudo o mais vale a pena. A consciência da morte – que sempre me acompanhou desde que eu era menino – nos diz que a absoluta maioria das coisas que nos agitam e perturbam não passam de uma besteira”. Dentro de pouquíssimo tempo, prosseguiu ele, delas não haverá mais memória. “Por isso, é preciso encará-las com um senso de humor”.

Na carta aos filhos, em 2005, ao dizer que queria ser cremado, as palavras que mais uma vez vieram a ele foram as da poesia. “Neruda disse que os poetas, entre outras coisas, têm a propriedade de serem feitos de fogo e de cinza. Nada melhor que o fogo para simbolizar essa vocação do poeta. Minhas cinzas, quero que sejam colocadas ao pé de um ipê amarelo.” E lá elas repousam, a semear a vida e a eternidade. Exatamente como acreditava Rubem Alves.

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