Só a solidariedade verdadeira, a compaixão e a sinceridade bem intencionada, podem gerar uma amizade doce, altruísta, permanente!
I. Do Infortúnio e da dor
Foi numa linda manhã de primavera dos anos 1998, uma sexta-feira, anunciando fim de século. Pouco antes das dez horas, a figura singela de Amália, casada, com seus 52 anos, magra e tristonha, vagarosa nos modos e no andar, revelava um aspecto de tristeza interior e de melancolia contida. Descera há pouco do taxi, em frente ao Cemitério da Saudade, sobraçando um maço de Crisântemos brancos. Entrou na Necrópole e, erguendo a cabeça, pôs-se a buscar, pelos caminhos estreitos entre as sepulturas, o jazigo onde estava sepultado seu filho, Paulo Roberto, 20 anos, o Paulinho saudoso, amado, querido, vítima de acidente de moto, fazia um ano.
Caminhando cabisbaixa, não notou que a primavera vestira de ouro vários Ipês amarelos e outros, de rosa; não percebeu que pequeninas Saíras urbanas desprezavam aquele ouro para se atirarem ávidas ao mel que os miúdos globos amarelos escondiam próximos ao caule. Não ouviu, nem sentiu os maviosos flautins dos Sanhaços azuis esverdeados, nem os repetidos anúncios dos Sabiás peito de cobre, marcando seus territórios e, sequer, os gritos dos Bem-te-vis atrevidos. Nada. Só a dor, a amargura e a angústia moravam em seu peito marcando seu rosto, roubando-lhe a alegria de viver. Sua vida se resumia em visitar seu único filho, em sua última morada, ali adiante, numa campa fria e sem esperanças.
Encontrando-a, Amália de Abreu aproximou-se do nicho que protegia a foto do filho, fixou demoradamente o olhar para aquele rosto sorridente, imagem tão cara, junto às datas de nascimento e morte, seguidas do nome, em belo monograma sobre a placa de metal dourado: Paulo Roberto de Abreu. Último carinho do devotado amor materno.
Um vento intruso e incomum sacudia o arvoredo do cemitério. Os pinheiros altos bramiam com um gemido surdo e místico, perturbando o ambiente ruidoso com a passarada hodierna e o ensolarado e primaveril campo santo, silencioso e quase deserto àquela hora matinal. Amália, os cabelos grisalhos revoltos traiam um descuido com a autoestima de seu visual. Mãe amável, mão nos cabelos, ela não se deu ao trabalho de ver e avaliar as poucas pessoas, todas mulheres, visitantes de outros mortos circunvizinhos. Era início de setembro. Os finados ainda tardariam a chegar, quando novembro viesse ..
Mãos ágeis, Amália removeu as flores secas do vaso sobre o túmulo, providenciou água fresca e acomodou os Crisântemos brancos no vaso, limpando depois a laje verde, vitrificada, que adornava a sepultura, usando panos que trouxera em sua bolsa, agora deitada próxima ao vaso. Não trouxera velas. Desagradava-lhe o cheiro da cera derretida a lembrar-lhe a interminável e angustiada noite do velório que se seguiu à tragédia.
Em seguida, sentou-se na beirada do jazigo, fixando o olhar naquele sorriso jovem, contínuo, mas inerte, distante, saudoso, como que a clamar por compaixão materna. E, com as lembranças, poucas alegres, e muitas amargas, do passado recente, os olhos claros daquela mãe tão presente, amorosa, mas então mater dolorosa inconformada, deitaram lágrimas solitárias, contidas pela alvura da cambraia do lenço aberto em suas mãos. Cabeça baixa, pôs-se a meditar, ensaiando uma oração a invocar a piedade divina por um perdão que seu coração teimava em não conceder.
Recomposta, após longos momentos em oração, Amália ainda sentada, ergueu a cabeça e percebeu que alguém, com um ar de solidariedade, a fitava duas sepulturas distantes da de seu filho. Era outra mulher, mãe um pouco mais jovem e simpática que, de pé, olhava para ela, enquanto também ia cuidando de repor as flores do sepulcro que visitava. Trocaram sorrisos contidos, envolvidas por aquela aura de cumplicidade de mães que lamentavam a perda de entes muito queridos. Amália, reconhecendo a irmandade na dor, aproximou-se e cumprimentou a eventual amiga de infortúnio:
— Bom dia, eu sou Amália, vim visitar meu filho, o Paulinho, quer dizer, Paulo Roberto, falou estendendo a mão e lançando um olhar para a foto de uma jovem no frontal da cripta que recebia rosas amarelas arrumadas no vaso central, pela outra mãe. Esta, prontamente, gentil, ergueu-se e estendeu sua mão cumprimentando Amália:
— Bom dia, prazer em conhecê-la, Amália, sou Jéssica de Oliveira. Também estou visitando minha querida filha, Janice, que um malvado e cruel câncer de seios, levou faz coisa de ano e meio. Pobres das mães que têm de sepultar seus próprios filhos, não?
É sim, minha querida, concordou Amélia, respirando fundo, como desafogo da canseirinha, provocada por arritmia cardíaca. É doloroso e sofrido. O meu Paulinho, pobrezinho, um ônibus atingiu sua moto, por trás. Pelas costas… sabe? E os olhares de solidariedade e compaixão materna se repetiam de parte a parte; ambas assentido com a cabeça em sinal afirmativo, olhos marejados, sorrisos sombrios, mas amistosos.
Esse, o retrato diuturno daquelas vidas! Lembrar e relembrar as causas inimigas, responsáveis pelo fim precoce da vida de seus filhos.
Assim nascia uma amizade, entre Amália e Jéssica, movida pelas desditas da sorte, pelo infortúnio de seus filhos, cuja alma reverenciavam, irmanadas naquela mistura de dor e saudade comum dos entes queridos, cruelmente subtraídos ao convívio materno e familiar, pela morte ingrata, repentina e recente, provocada pelos irresponsáveis inimigos da vida.
Amália retornou ao jazigo de Paulinho, retirando do nicho que guardava e protegia sua foto, um minúsculo livro, onde se lia, na capa: Pequeno Diário. Ali, Paulinho deixara, em vida, alguns registros pessoais, depois dos quais sua mãe, Amália, acrescentara outras notas de lembranças saudosas do filho. Nesse dia, escreveu:
“ — Querido Paulinho, hoje lembro do dia alegre em que seu pai lhe deu a Moto de presente, por você ter tido boas notas no ENEM, garantindo uma vaga na Faculdade de Engenharia Ambiental’.
Depois, o Pequeno Diário foi devolvido ao nicho, explicando Amália, à amiga recente, o que significava aquele livrinho. Era algo pueril, sem valor, mas servia-lhe de humilde consolo: ser o canal de comunição com o além… única ligação com o filho: notas e lembranças em seu Pequeno Diário!
E as duas amigas puseram-se a relembrar passagens da vida de seus filhos e dos sofrimentos de suas ausências. Um repisar de memórias tristes que só acentuavam e alongavam a dor de cada uma. Não trocaram número de telefones, tão certo acreditavam reencontrar-se ali, como se aquela coincidência tornaria a repetir-se, logo, logo, diante das últimas moradas dos jovens, que tristes lembranças guardavam. Mães amorosas, as sensações fúnebres que lembravam, reavivavam dores, como penitências que, em suas consciências, acreditavam ter de cumprir.
Jéssica, então, aproximou-se carinhosamente de Amália e despediu-se com um longo e afetuoso abraço, reconfortante para ambas as mães. Amália retribuiu o afeto dizendo: — Até breve, amiga Jéssica, até breve!
II. Da solidariedade e da compaixão
Nos finados desse ano, Jéssica foi visitar sua filha, Janice, e lá esteve a procurar pela amiga Amália, naquela imensidão de visitantes, pois acreditava que ela, certamente também teria vindo. Os Crisântemos haviam murchado, secado, desmanchados. Não foram substituídos. A mãe de Paulinho não voltara, ainda. Terá vindo depois? Ou, talvez, antes?
Jéssica aproximou-se, do túmulo de Paulinho, olhou o nicho com o Pequeno Diário, ao lado da foto, mas não se encorajou em mexer naquele repositório de vida privada e canal materno de comunicação com o além. Animou-se, porém em servir: foi comprar flores novas frescas para o túmulo do filho de Amália. Limpou sua laje, deixou-a brilhante. Depois, afastou-se, tornando a procurar cuidadosamente a figura tristonha de Amália. Mas, em vão. Naquela hora, não estava, com certeza.
Cuidou, então, do túmulo de sua pranteada Janice, meditou por bom tempo e, em seguida, foi embora, ainda buscando, em vão, a presença da amiga. Não, ela não estivera por ali. Não viera. Que poderia ter acontecido? Sua saúde? Tanto tempo, assim, quem saberá?
Quarenta dias depois dos finados, Jéssica retornou ao Campo Santo da Saudade e percebeu que Amália estivera ali, mas acontecera novo desencontro. Nesse dia não se encontrariam, novamente. Então, pensou, pensou e movida de preocupação, decidiu que deixaria uma mensagem para a amiga, Amália. Sim, faria isso. Precisava saber dela, de sua saúde, de sua vida… Tão distinta e tão carente!
Mas, como faria? Não trouxera papel. Só uma esferográfica, na bolsa. Olhou para o nicho no túmulo de Paulinho, encheu-se de coragem sem má intenção, claro! Abriu o nicho, retirou o Pequeno Diário, abriu-o, virou rapidamente as páginas e, já se dispunha a escrever sua mensagem na primeira página em branco, sem conseguir deixar de ler o que Amália ali escrevera, por último. A mensagem dizia:
“– Veja, Paulinho querido, que encanto: Sua memória ajudou-me a conquistar uma nova amiga e você ganhou mais um afetuoso coração de mãe! A filhinha dela, está aqui mesmo, do seu lado, era a Janice! Jéssica, a nova amiga, trouxe-lhe, Paulinho, a carinhosa homenagem de flores: amor de mãe! Criatura amorosa! Que solidariedade! Ternura própria de coração nascido para servir.”
A mensagem tocou fundo o coração da amiga. Solícita, Jéssica mostrou-se preocupada com a saúde de Amália: Que acontecera? E o reencontro que não acontecia? Deixou escritas, então, palavras de conforto e carinho à amiga, agradecendo aquela especial mensagem ao filho, a ternura, como reconhecimento por tão pequeno serviço prestado à memória de Paulinho: só flores frescas e bonitas, nada mais! Agradeceria saber o e-mail e o telefone, para permitir o contatar rápido. Com beijos saudosos à amiga, despediu-se, assinando-se: Jéssica de Oliveira.
Dois meses depois, Amália tornou a visitar o filho, Paulinho e então leu a mensagem da amiga Jéssica. Sentiu-se acolhida e muito querida com aqueles sinceros afagos da amizade da amiga e agradecia do fundo do coração. Deixava também seus humildes e pequenos cuidados: serviços de limpeza e uma dúzia de tulipas amarelas, lindas, flores novas e alegres para a jovem Janice. Amália deixou ainda seu telefone e seu e-mail, anotados no Diarinho, para que a Jéssica, se servisse deles para o contato.
Sem ter havido nova coincidência para que as duas amigas se encontrassem, repetiram-se as gentilezas e mensagens. Jéssica lá estivera, por muitas horas, à espera de tornar a ver Amália. Mas o reencontro ali, no eterno campo santo, não acontecia. Então, Jéssica cuidou dos dois jazigos, deixou flores novas e frescas em ambos os jazigos. E, ao ler o Diário, ficou feliz com a mensagem de Amália, e o número de telefone e e-mail.
III.Partilhando a vida e esquecendo a morte
As mensagens mútuas, mais amistosas do que fúnebres, repetiram-se por muito tempo, até que Jéssica resolveu escrever à Amália e depois telefonar-lhe pessoalmente dizendo-se saudosa do convívio pessoal com a amiga e propondo um encontro em um Café, ou um almoço em restaurante simples da cidade, para que pudessem rever-se e trocar ideias. Havia muito tempo que não se viam, mas se estimavam cada vez mais, pois o carinho e a amizade pessoal de cada uma alimentava a união concreta, verdadeira, de suas almas gêmeas.
Criadas as oportunidade, encontraram-se. E puderam confessar seus sentimentos agradáveis e recíprocos. Seus anseios. Foi uma alegria contagiante e um bem inestimável para essas duas almas bem nascidas, especialmente para Amália, cuja saúde inspirava mesmo cuidados. O calor humano de Jéssica fazia-lhe muito bem ao coração frágil, ao físico abatido e à alma, tão machucada!
Acontecera para ela, que, depois da morte de Paulinho, o marido pediu-lhe o divórcio, piorando seu estado. Abalado e deprimido com a perda do filho, Roberto, o marido, sentia-se culpado por ter dado ao filho a Moto. Para ele, a máquina fora a arma responsável que matara seu filho! Não conseguia mais ver-se casado; sentia-se culpado. Daí aquelas ausências prolongadas de Amália, para rever o filho, enfrentar o sorriso de Paulinho, que se fora, e o olhar de compaixão de Jéssica, tão amiga!
Os encontros das duas amigas prosseguiram, repetindo-se. Ambas falavam, agora, de si próprias de suas inclinações, de solidão amorosa e de muitas outras coisas, deixando de lado aqueles sofrimentos atrozes quando se referiam às saudades dos filhos falecidos.
O casamento de Jéssica também esfriara depois da morte da filha. O marido queria planejar outra filha, Jéssica não estava preparada para uma nova gravidez, passados mais de vinte anos! A ambas restava sua amizade comum, o novo encanto que lhes presenteara com um novo objetivo de existência: Viver, trabalhar, pensar em si mesmas, viajar, conhecer lugares e gente nova, novos costumes; fazer novas amizades. Dar asas às emoções! Para as amarguras das perdas irreparáveis, bastavam as penitências das tristezas e dos sofrimentos que enfrentaram anos a fio.
Entenderam as amigas muito bem a mensagem deixada quando nosso Deus caminhava e ensinava na aspereza dos caminhos da terra:
“deixai que os mortos enterrem seus mortos. Cuidai uns dos outros, prestando o serviço e a caridade. Só o perdão pode nos aproximar do Céu. Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Quem quer ser o primeiro, que seja o último, aquele que serve.”
Passaram, então, Amália e Jéssica, a ver-se, com frequência e a se apoiarem mutuamente. Foram por repetidas vezes, almoçar juntas. Cuidavam-se. Melhoraram sua autoestima. Uma a cuidar da outra. Voltaram a trabalhar e estavam sempre em contato pessoal, planejando encontros.
Tiravam férias juntas e faziam pequenas viagens pelo interior do país. Conheceram o Paraná, com a Serra da Graciosa; Santa Catarina, descobrindo um mundo maravilhoso de cidades, como Treze Tílias, o Tirol brasileiro. Visitaram as praias de Fortaleza e das cidades nordestinas mais visitadas, garantindo-lhes autoconfiança, alegrias imensas, afastando de suas mentes e corações a permanente melancolia que as afligia na insistência de relembrar tristezas dos filhos desaparecidos.
Passou a ser mais importante cuidar da vida do que da morte. Visitaram igrejas de Salvador e das Minas Gerais, onde oravam por seus filhos, mas sem permitir que as lembranças amargas perturbassem o cotidiano de suas vidas. Os Anjos da Guarda cuidariam das almas de seus filhos. Eles moravam, agora, em outr a dimensão, o mundo da eternidade.
Sua amizade se fortaleceu. Liam muito e viajavam por suas leituras, comentando entre si tudo o que aprendiam. Partilhavam um mundo de acontecimentos interessantes. Teatros e boas peças, música edificante. E conquistaram novas amizades e as amigas às admiravam por sua força como mulheres que enfrentaram as vicissitudes da vida e venceram os obstáculos para voltar a viver uma vida saudável, plena de momentos felizes. Nunca lhes escapou também a oportunidade de fazer o bem a seus semelhantes, que lhes assegurou ocasiões de felicidade. Neste novo século, vivendo 2018, as duas amigas já idosas (Amália já passou dos 72 anos e Jéssica está próxima disso), ainda se visitam, assistem filmes juntas. Praticam hidroginástica, participam de passeios e pequenas caminhadas. São muito felizes. E trazem dentro de si a força de uma amizade que perdura por toda a sua vida. Embora saibamos que nada é para sempre, podemos afirmar que essa amizade vive para sempre, enquanto durar. E elas, as duas amigas ainda vivem, (não com os nomes que lhes demos, mas com outros nomes, para preservar-lhes a própria privacidade e de seus filhos. Mas estão vivas, pois esta é uma história que atinge a vida de muitas pessoas, um exemplo edificante de amor à vida e ao semelhante. Nosso Deus é um Deus da Vida, não da Morte!
(*) Celso de Almeida Cini é advogado, professor, escritor, memorialista e membro da Academia de Letras da Grande São Paulo, ocupando a Cadeira 37, cujo Patrono é Afonso Schmidt